#04 - SETEMBRO 2023
Trilhos de uma análise
Andrea Tochetto[1]
Algumas passagens na psicanálise são especiais para mim. Parto de um trecho do seminário 3 em que Lacan faz metáfora com a estrada. Diz que a estrada é “um significante que merece ser considerado como tal”[2], e para isso faz-se necessário pensar nessa metáfora não apenas como um meio para ir de um lugar ao outro, mas ainda seus entroncamentos, a possibilidade de ida e retorno, uma via de comunicação. A estrada principal, nos diz Lacan, “é um sítio em torno do qual não só aglomeram todas as espécies de habitantes, de estâncias, mas também que polariza, enquanto significante, as significações”[3].
Acho particularmente simples e extraordinário metaforizar a estrada com o percurso do discurso de uma análise, a polarização de significantes falados nos entroncamentos de um discurso, suas idas, voltas e retornos ou equívocos de caminhada. Neste percurso não há vias rápidas, uma vez que em cada esquina pode haver um novo encontro, que pode vir ou não a ser outro rumo, e como tal, não sabido, mas dito.
Depois um “slogan” também de Lacan: “que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”[4]. Está no texto O aturdito, de 1972. E, assim como Lacan bem chamou o texto, é uma contribuição, porque “a besteira tem lá seus caminhos, que são impenetráveis”[5] e “concluamos que há mal-entendido”[6]. Ali, articula o dizer, o semblante, a verdade e o real fazendo uso de toda sua topologia, interrogando a relação do dizer com o dito.
Para ser raso no entendimento desse aforismo lacaniano diria que um discurso não pode ser compreendido rapidamente, há um rastro que se extravia, uma hiância entre a boca de que sai e ouvido da entrada. Ainda que boca e ouvido sejam órgãos do mesmo corpo ou de corpos diferentes, e isso faz de cada ser falante um delirante de fala e audição. “O aturdito” traz mais para ser lido. Há a ausência da relação sexual. O não todo, argumentado em seus impasses lógicos pela topologia. “É também traçar o caminho pelo qual se encontra, em cada discurso, o real com que ele se enrosca, e despachar os mitos de que ele ordinariamente se supre[7]”
Leio nestes textos o discurso e os trilhos de uma análise. Sempre particular, não única (o que colocaria o ser falante fora do conjunto), afinal de alguma forma fazemos série. Uma aposta de linguagem, de encontro com algum saber, de costura, de encruzilhada, de trilho, de estrada!
Quando no eixo 3 da apresentação desta 4° Jornada, Maria Teresa Wendhausen abre a questão da sobrevivência da clínica apresentada por Lacan, marcada por Miller, diante da patologização, aposto também no viver da Psicanálise e na sua prática. É ali, no discurso psicanalítico, lugar do dizer, enquanto dito da possibilidade da existência do real, que faz tropeçar, que reencontra um velho conhecido que repete, que retorna nas contingências da vida, que esse sujeito, esse falasser, reescreve de forma singular a mesma trágica novela particular.
A prática da psicanálise, lugar do discurso psicanalítico, ironicamente, é lugar também do universal, mas não só, uma vez que nas contingências dos entroncamentos do discurso, na negociação com seus objetos e seu gozo, discursa sobre sua história, contorna vazios, e desenha letras. Eis o encontro com o singular de cada sujeito falasser.
Em minhas comparações, diria que assim como a estrada, com suas curvas e entroncamentos, retas ou atalhos, também as novelas particulares, em uma análise, o falasser vai acompanhado do analista, pois esse testemunha, decifrando hieróglifos, mas não todos. Nessa parceria, a presença do analista é a testemunha daquilo que se diz e daquilo que cala, daquilo que tropeça, daquilo que não se pensou, mas saiu, daquilo que parece estranho, mas também familiar. E como Leguil diz: “o analista está presente na sessão, no sentido de que ele está de fato ali”[8] e é dessa presença que o “sujeito pode prescindir ao perceber a função que teve para ele, para ela, esse encontro extraordinário com a experiência analítica”[9].
Ainda, seguindo o Eixo apresentado por Maria Teresa, recorro à fala de que no atual do tempo, cabe a posição do analista estar condizente com o que se apresenta hoje na civilização, enquanto analista sinthoma, da clínica borromeana, e mantenho o farol aceso em direção à questão em torno do lugar do diagnóstico estrutural na clínica borromeana, e responderia que “a topologia não foi feita para nos guiar na estrutura. Ela é a estrutura – como retroação da ordem de cadeia em que consiste a linguagem”[10]. Ou, por minhas metáforas, que os trilhos desse trem podem levar a muitos lugares, e que entendo que o diagnóstico estrutural seja àquela estação de trem, pela qual passamos, que nos orienta o trajeto, mas a lógica topológica borromeana é o trilho triplo que sustenta o deslizar dos vagões, estes sendo o dito da linguagem que não mais permitem esquecer seu dizer. Um percurso férreo, de quantas voltas forem necessárias passar cortando o dentro e fora até que algo desembarque.
O discurso psicanalítico, assim, não é lugar para se frequentar em busca de entendimento, é espaço lógico de uma experiência a ser dita, afinal onde não se procura, acha.