skip to Main Content

Tren de Sombras (1997)

Valéria Beatriz Araujo

No segundo semestre de 2023, a Comissão de Biblioteca da Seção Sul teve a atividade Conexão Psicanálise e Cinema com a presença ímpar de Marcela Antelo (AME/EBP-BA/AMP), que apresentou um filme inclassificável. Tren de Sombras, El espectro de Le Thuit, filme de José Luis Guerín (1977), dialoga com as imagens do filme de Gerard Fleury (Portrait de Famille), feito num verão nos anos 30, cujas cenas familiares “vem a rememorar a infância do cinema”, nas palavras do Guerín.

Tren de Sombras apresenta um movimento de construção e desconstrução, de forma atonal e não-toda, um esforço de poesia na busca dos espaços onde antes habitava o preto, o branco e o desbotado. Entre luz, sombras e cores, o diretor cria algo novo a partir do que resta da obra de Fleury. Cria a partir dos dejetos, transitando no espaço-tempo. Entre ato e corte advém um filme experimental, no sentido de não ser para compreender, mas para ser vivenciado no nível da experiência mesma (onde há que se colocar algo de si). Um trabalho que se dá numa diacronia entre as fendas do que restou e no novo que lhe dá um contorno.

Dentre as cenas destaco algo deste múltiplo, um trem em movimento (num primeiro tempo do filme, a partir das imagens da obra de Fleury), um trem que leva e traz e promove laço, encontros e despedidas. Cenas que, na dobra do tempo e pelo olhar de Guerín, revelam um real do tempo, um trem em trilhos agora abandonados e cobertos pela vegetação.

Os dois filmes se imiscuem entre a paleta de cores do presente e a opacidade do passado. As cenas mais deterioradas ganham de Guerín, tal como um bricoleur, uma “luz perfeita”, a luz tão buscada por Fleury até seu último dia de vida. Estas não são cenas de nada, são cenas com o nada. Uma maneira de saber-fazer com os dejetos, “de se deslizar no mundo”, como diz Miller.

Assim como Velásquez, Guerín está dentro da obra ao mesmo tempo em que a olha de fora, ex-sistindo ao filme de Fleury e introduzindo, assim, uma descontinuidade, um antes aqui, um depois lá. Por isso, este filme pode ser um clássico, num dos sentidos que Italo Calvino lhe dá: como algo que nunca terminou de dizer aquilo que tinha que dizer.

Desta forma, neste espectro, difuso e sem contornos nítidos, tal como um conector de dois elementos heterogêneos, tem-se elementos de interface entre os dois filmes: partícula-onda, luz e sombra, Fleury e Guerín. Entradas e saídas, como disse Marcela Antelo.  Então, poderíamos dizer que passado e presente se encontram aí numa perspectiva topológica, onde o avesso e outro lado são uma só banda, na sobreposição de luz e sombras, de silêncios e sons.

Por último, penso que o filme de Guerín estaria à altura do que define a obra de arte para Walter Benjamin:

“… consiste, precisamente, em não estar inserida num tempo que a encerra e lhe dá sentido, mas engendrar, ela própria, um presente, um passado e um futuro. Abandonando a idéia rasa do artista como testemunha de seu tempo, trata-se de pensar que a obra de arte instaura o seu Tempo”.


1 Calvino, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 11.
2 Wajcman, Gérard. A arte, a psicanálise, o século.  Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 61.
Back To Top