Gustavo Ramos (EBP/AMP) Teresa Pavone (EBP/AMP) O VI Boletim da Seção Sul, assim como…
SUSTENTAR O REAL PARA QUE A PSICANÁLISE SOBREVIVA: A PRESENÇA DOS PSICANALISTAS NO MUNDO
Samyra Assad
INTRODUÇÃO
Primeiramente, agradeço à colega Teresa Pavone pelo convite de participar da “Noite de Biblioteca” da EBP-Seção Sul, realizada no dia 14/09/2022, onde apresentei um texto cujo título trago acima[1]. Estávamos às vésperas das eleições para a presidência do Brasil, cujos candidatos para o segundo turno de votações eram Jair Bolsonaro e Lula. Os respectivos partidos políticos desses candidatos evocavam um antagonismo evidente em seus regimes: fascista e democrático. Lula venceu essas eleições em outubro de 2022.
BREVE RESUMO DO TEXTO
É certo que se verifica, ao longo dos tempos, um recrudescimento dos efeitos corrosivos da pulsão de morte na civilização, cujo mal-estar não passa mais pelo recalque. Este foi substituído pela reconfiguração do mundo com o discurso científico, através do qual o real se funde nos números, nas medidas, na máquina.
Sobre esse mesmo aspecto, pergunto-me se o discurso religioso também não faria parte dessa nova reconfiguração do mundo. Observa-se neste também uma tendência a partir da qual o único é substituído pelo tipo como consequência do anseio de domínio e de controle por meio dos seus ideais. Não é difícil supor que essa tendência na esfera religiosa ganha continuidade transformando os indivíduos em máquinas que veiculam o próprio gozo dos seus agentes.
Desse modo, é possível observar a base do domínio crescente da religião evangélica não somente no parlamento brasileiro, como também na criação de cursos e de universidades cristãs, no mercado dos dízimos que não sofrem a incidência dos tributos federais, nas construções cada vez mais frequentes de igrejas como verdadeiros palácios, nas emissoras de televisão, e, como se não bastasse, na direção de instituições que visam fornecer carteira e diplomas de psicanalista a cada biênio para os alunos… Enfim, um controle progressivo do país. Trata-se de um crescimento que se volta para o regime totalitário, anti-democrático[2].
Especificamente, importa retomar a questão de “um desafio contemporâneo de sustentar o real para que a psicanálise sobreviva”, inclusive, quando essa tendência totalitária exibe seus tentáculos no desmatamento da Amazônia da psicanálise – esse pulmão do mundo que sustenta um corpo no sintoma, que sustenta um real.
Se à psicanálise é reservada uma resistência que lhe é inerente a partir de um mal-estar na civilização – ou um “impasse na civilização” como diz Miller – sob a égide de uma orientação em direção ao real, sua resposta é e sempre foi uma subversão, desde a sua origem. A experiência que ela permite trilhar, fora do domínio do Mestre, do significante Mestre do Estado, desvela e transmite, por fim, uma desalienação.
Isso nos permite dizer que, na leitura da tendência atual à quantificação, ao trazermos a religião ligada ao Estado como um dos nomes do Mestre contemporâneo, certamente as iscas da submissão a um controle revestido dos ideais religiosos, e também a responsabilidade de Deus quanto ao nosso desejo, estariam totalmente fora de cogitação – quanto mais na formação dos analistas! Não, eles não!
No entanto, se a subjetividade contemporânea insiste no valor do que passa pelo corpo sem a produção de um saber, isso nos interroga. Interroga-nos a ditadura da quantificação, da avaliação, do uso da política do país e da psicanálise pela religião, na medida em que isso, de algum modo – talvez até forçosamente falando –, implicaria, enfim, em um “não tem corpo, não tem crime”, tal como o slogan da ditadura dos anos 70. Nesse apagamento inerente a um controle totalitário, observamos um contraponto que advém da democracia, em sua afinidade com as diferenças, com o único, com o real, e, portanto, do lado do sintoma, do lado da sobrevivência da psicanálise.
Aí está: a presença dos psicanalistas no mundo, inexoravelmente, a partir de uma crítica e leitura assíduas em oposição ao governo dos mortos, pautando-se no real daquilo que é vivo, que pulsa, que quer dizer, dependerá, a meu ver, do laço indestrutível entre a psicanálise e a democracia.
Belo Horizonte, 27/07/2023.
[1] A primeira versão desse texto, com o título “Um desafio contemporâneo à psicanálise: sustentar o real para que a psicanálise sobreviva”, está publicada em um livro que foi resultado do trabalho do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Ver: “Ofício do Psicanalista II: por que não regulamentar a psicanálise”, São Paulo: Editora Escuta, 2019, págs. 115 a 128. Organizadoras: Ana Maria Sigal, Bárbara Conte e Samyra Assad.
[2] Agradeço a Jorge Pimenta, pela referência après-coup. Trata-se de uma fonte do NESP – Núcleo de Estudos Sócio Políticos da PUC Minas, que dispõe de gráficos indicando o crescimento das igrejas e bancadas evangélicas no Brasil. Disponível em: https://www.facebook.com/100063464776012/posts/pfbid0bZa1moQ9ez1gGd3ALP4gPNq7xYbDC62GkjovoGi7Wwm211PCzLLDqiDVrm2zmjgVl/