Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
Sobre o feminino: mais ainda no continente escuro
Paula Lermen
“Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas, que é a natureza das palavras”, afirma Lacan na lição de 20 de fevereiro de 1973 (2018, p. 79). Ressoa ainda aí o eco da reflexão de Simone de Beauvoir em seu Segundo Sexo, na qual o masculino universal aparece como uma política de rechaço e apagamento de metade da população humana. “A” mulher é aquilo que a linguagem (A) exclui, nos diz Lacan no seminário em que busca dar consistência lógica a algo que no século XX emergiu como um discurso de denúncia.
Essa exclusão seria fundante da cultura, do pacto que firmamos ao ceder gozo e consentir entrar na linguagem. Se os significantes que produzem sujeitos circulam em torno do real do sexo, Lacan propõe que o ser falante entra na linguagem ao consentir em se posicionar em uma partilha dos sexos e a grande negação que caracteriza seu ensino – a premissa de que “não há relação sexual” – ilumina toda sua tentativa de sistematização dessas posições. O mito de origem do universal masculino é o que Freud nos conta em Totem e Tabu: os irmãos matam o pai da horda, detentor de todas as fêmeas, e erguem um totem em seu nome. Em nome do Pai.
É inegável que vivemos no tempo em que vacila o pai como poder simbólico organizador da vida. Vacila o totem, vacila o tabu: os irmãos – e principalmente as irmãs – questionam o pacto civilizatório. Vacila a cena edípica como máquina de sentido sexual e aí estamos diante do Um-sozinho de que nos fala Lacan em seu último ensino.
Vivemos a emergência de um novo discurso do mestre. Enquanto invenções científicas como a reprodução in vitro e os testes de DNA deslocam para o real algo que se garantia pelo simbólico, o antigo discurso do mestre – o nome do pai – se sustenta na lógica religiosa, uma vez que “não há pai sem essa posição de Deus” (BROUSSE, 2019, p. 23). No “discurso do capitalista” (LACAN, 1972), formalizado como uma torção da parte esquerda da fórmula do discurso do mestre, o sujeito dividido (S barrado) está no lugar do agente movimentador do discurso, porém desaparece a seta que se direcionaria ao saber (S2) no campo do Outro. O avesso do discurso do capitalista é a psicanálise: “homens e mulheres, para um analista de orientação lacaniana, são semblantes e não tem outro ser que não de linguagem, ou seja, de falta a ser. Um déficit de ser, eis o q caracteriza o ser sexuado (BROUSSE, 2019, p. 94-5).
Um sozinho, feminino
“É próprio da peculiaridade da psicanálise, então, que ela não se ponha a descrever o que é uma mulher – uma tarefa quase impossível para ela -, mas investigue como uma mulher vem a ser, como se desenvolve a partir de uma criança inatamente bissexual” (FREUD, 2010, p. 269). Em termos lacanianos, seria investigar, entre outras coisas, o que tornaria possível a um ser falante endereçar-se também a um gozo fora da significação fálica.
Na conferência de 1933 sobre a feminilidade, Freud já havia podido formular que o que caracterizaria a feminilidade seria o q ele chama de “ligação pré-edípica com a mãe” (p. 273). As marcas deixadas no corpo nessa fase mítica de comunhão com a mãe seriam assim os pontos de fixação de uma posição. Lendo essa conferência a partir de Lacan, podemos pensar no tempo de lalíngua, tempo em que a língua lambe o corpo, escrevendo letras, cavando sulcos, deixando rastros, sem dentro nem fora: articulação de afetos que “vão muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber” (LACAN, 2018, p. 149). O pequeno ser que será falante, mas ainda não é, suporta em seu corpo um gozo real, opaco, do qual não é nem objeto nem sujeito.
Com Miller, encontramos o dizer enigmático de Lacan de que “uno lo sabe, uno mismo”, como uma referência ao inconsciente real (MILLER, 2014, p. 15). Que na língua castelhana, assim como na portuguesa, essa expressão toma a forma masculina nos remete ao universal masculino plasmado na linguagem. Mas esse que sabe não é o sujeito do desejo, sujeito esse situado na posição masculina pela fórmula do seminário 20, sempre endereçado a algum objeto que vele o pequeno a. Esse que sabe parece mais com o feminino neutro de que nos fala Bassol (2017): o ser falante em seu gozo a-sexual, aquém e além da linguagem. Lacan escreve sobre esse gozo localizando-o como característico daqueles sujeitos que se inscrevem sob a bandeira do feminino, definindo-o pelo indizível que se formaliza no endereçamento ao S(A/)
É um imenso desafio falar disso, ou seja, abordar o feminino na estruturação binária do significante, que é o discurso estabelecido como o “delírio normal” do neurótico (MILLER, 2003, p. 15). Tropeçamos nas palavras, e nos tropeços inventamos novos discursos, novos semblantes, novos corpos… enquanto isso não cessa de tentar inscrever-se.
No exercício da psicanálise, ficamos sabendo um pouco do que os sujeitos que escutamos sabem. O sujeito é efeito do significante – e do discurso. Mas não todo. É efeito também da falta de significante que faz marchar a bateria, e aí o real nos atinge como causa: o indizível é causa do desejo de dizer.