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Sobre algum valor de verdade

Diego Cervelin
Cartel Fulgurante / Eixo 2 – Estar à altura do acontecimento imprevisto

[Foto de Lina Sumizono – Cura – Festival de Curitiba, 2022]
Ainda no começo do eixo, Flávia Cêra refere-se ao papel do analista em fazer do inconsciente um acontecimento. Parto daí. Essa, aliás, talvez seja uma daquelas questões que acompanham os praticantes desde as entrevistas preliminares, assumindo aqui e ali tonalidades diferentes. Nos atendimentos, tem sido relativamente fácil escutar enunciados que nem sempre singularizam uma posição subjetiva mais clara – ao menos, não de primeira. Eles se apresentam, por exemplo, através da fórmula “eu sou o que digo que sou” ou mesmo quando nos deparamos com constatações do tipo “vivo um relacionamento tóxico”. Mas, afinal, quem fala aí? Tóxico…  como? Ainda que esses significantes do momento nem sempre sejam efetivamente capazes de comportar uma gramática pulsional, eles nos permitem perceber que há um corpo socializado – um corpo que testemunha como os discursos se inscrevem sobre ele[1]. Nessa clínica, as inúmeras declinações do moi se apresentam entremeadas tanto ao imperativo “Goza!” quanto às demandas por previsibilidade. Diante disso, analista e paciente estão longe de bem-dizer aquele eu [Je] que escapa e comporta restos, equivocidades. Se, do lado do paciente, surge a demanda pelo desaparecimento do mal-estar, que caminho se abre ao praticante? Como fazer com que algo da dignidade do resto possa entrar na cena? Como o corte poderia criar um intervalo na demanda pela satisfação taxativa? Aqui talvez já não falamos de decifração, mas antes de localização e indicação de um funcionamento que segue ignorado. Afinal, se há desabonados do inconsciente, isso tampouco significa que eles sejam desabonados do acontecimento de corpo[2]. Será que esse funcionamento não poderia trazer algo de surpreendente? Por que não conferir um “valor de verdade”[3] ao gozo que irrompe[4] para tomá-lo como um referente passível de ser utilizado pelo analista e pelo paciente na localização tanto do núcleo do mal-estar quanto da possibilidade inaudita de lidar com ele? Qualquer gozo poderia se transformar em referente? Também o gozo entremeado ao sentido? E, nesse ponto, caberia ao analista fazer uma intervenção ou eventualmente uma contraposição tão direta quando os sentidos parecem líquidos e certos? Se nem sempre, quando sim? E, na sessão, como fazer emergir o tempo libidinal – com suas ambiguidades – quando os segundos parecem ser medidos por binários como “sucesso x fracasso”? Isso já não seria um acontecimento?

[1] Laurent, E. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 213.

[2] Cf. Tudanca, L. Abonados e desabonados. Disponível em: <https://enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023/06/ENAPOL-Luis-Tudanca-PT.pdf>.

[3] Cf. Lacan, J. “Da incompreensão e outros temas”. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 45-47.

[4] Laurent, E. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eólia, n. 79, jul. 2018.

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