#04 - SETEMBRO 2024
Sobre a identificação ao falo morto
Rafael Marques Longo
Joinville/SC
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A referência é o livro de Hervé Castanet, intitulado Homoanalysants: Des homosexuels en analyse. Trata-se de um compilado de oito casos, dos quais sete analisantes e o do renomado escritor e dramaturgo francês Jean Genet, sobre homossexualidade masculina. Castanet apresenta uma leitura dos casos orientada pelo último ensino de Lacan, podendo mostrar como “Cada um desses analisantes pode, modestamente, construir seu sinthome no seu tratamento” (Castanet, 2013, p. 15)[1]. Para tanto, há um percurso implicado, que parte de uma referência pouco discutida nos dias de hoje, ao menos nesses termos: a identificação ao falo morto.
Breves apontamentos históricos:
A homossexualidade foi incluída no Psychopathia Sexualis, o primeiro manual de diagnóstico de perversões sexuais, publicado em 1886 por Richard von Kraff-Ebing. Estava ela entre as parestesias, uma das quatro categorias de “desvios sexuais”, nas quais o desejo sexual se apresentaria sobre um objeto errôneo. Na mesma categoria estavam: homossexualidade, fetichismo, sadismo e masoquismo. Na época, o que eram consideradas perversões? O que estava fora da norma, do “propósito natural”. O que a norma não contemplava, era considerado perversão[2].
A psicanálise, de certa forma herdeira da tradição psiquiátrica alemã, vai com Freud seguir, de algum modo, essa concepção. A ponto de, no início da obra de Freud, ele tratar o tema como os invertidos[3]. Uma inversão do objeto sexual em relação ao Complexo de Édipo “normal”. Será com Lacan que a suposta biologia freudiana pode ser abandonada e, concomitantemente, a confusão epistêmica entre as ciências médicas – incluindo as tradições psiquiátricas – e a teoria psicanalítica pode ser esclarecida, ao estruturar a singularidade de seu campo. Desse modo, é um erro equivaler o termo perversão nos diferentes discursos; tal qual é um erro supor que o termo homossexualidade na Orientação lacaniana tenha qualquer univocidade com o que se discute em teorias sociais, políticas ou psicológicas.
Circunscrever as diferenças epistêmicas não é o objetivo deste texto, basta a advertência sobre a singularidade da Orientação lacaniana que pode ser resumida na seguinte afirmação: “Os homossexuais não formam um conjunto fechado. Não há uma, mas homossexualidades.” (Castanet, 2013, p. 138)[4], precisamente porque a homossexualidade masculina não é, em psicanálise, uma entidade psicopatológica.
A identificação ao falo morto:
Para situar a questão sobre o falo morto, é necessário recorrer à distinção entre falo simbólico e falo imaginário apresentada por Lacan no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. O falo simbólico é o que não pode ser negativizado[5], enquanto o falo imaginário é a parte excluída da imagem especular ou, como afirma Lacan em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, é “a libra de carne paga pela vida (…), como tal impossível de restituir ao corpo imaginário” (Lacan, 1998, p. 636).
Nesse momento do ensino, Lacan constrói, segundo Castanet (p. 142), a homossexualidade masculina na sua relação com esses dois conceitos. A tese lançada no Seminário, livro V é a de que a mãe ocuparia um lugar determinante na homossexualidade masculina por ser aquela que estabelece a lei para o pai[6], tendo como consequência o bloqueio da saída do Édipo pelo excesso de sua presença[7]. E é dessa consequência que deriva a hipótese do autor, nos seguintes termos: “por essa identificação à mãe, o falo imaginário se encontra positivado por uma dupla negação – o que se escreve [-(-φ)].” (Castanet, 2013, p. 144)[8] O falo imaginário positivado, nesse caso, é precisamente o véu pelo qual o fetiche faz figurar o que falta para-além do objeto, que Lacan aponta no Seminário, livro 4.
Enfim, e o falo morto? É o falo da mãe: φ0, visto que, vale lembrar, na doutrina freudiana quem é portador do falo é o pai. O φ0 é distinto do 𝚽0 de certas psicoses. A identificação do sujeito ao falo morto conduz, segundo Castanet (2013, p. 145), “a uma desconexão com aquilo que é vivo”, ou seja, “φ0 é mortificação do vivo”[9].
Como indicamos no início do texto, trata-se de um percurso, que se inicia na identificação ao falo morto. Localizar tal identificação seria um primeiro momento do tratamento, ao construir um sintoma analítico. O percurso se encaminharia exatamente do sintoma ao sinthome, passando pelas invenções e bricolagens possíveis de cada Um. No caso de cada Um, incluindo os casos de homossexualidade masculina, passando necessariamente da ordem fálica, do lado masculino da sexuação, ao feminino. Se a hipótese de Hervé Castanet serve a tratamentos de homossexuais masculinos, evidentemente, não é por uma suposta falicização da clínica, ao definir uma identificação clínica que poderia ter valor de generalização; é precisamente por orientar uma clínica pelo último ensino de Lacan, tomando a defesa frente à relação sexual que não há, seja ela qual for, como início de percurso rumo à vivificação do ser falante.