Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
Silêncio e gozo
Aline Gusberti
Nosso tema de cartel permitiu uma aproximação com o tema do Encontro Brasileiro do Campo Freudiano de 2021, intitulado: Feminino, Infamiliar, Dizer o indizível. Analícea Calmon articulou os 3 adjetivos do título, concluindo que o que há de infamiliar no feminino é o gozo, que por sua vez é indizível, um gozo que confronta o limite do simbolizável. O infamiliar refere-se ao gozo opaco, produto do trauma do encontro da linguagem com o corpo, não por estar recalcado, mas por ser intraduzível em termos simbólicos, não há um saber que se estabeleça sobre essa marca, mas há a marca e o sentimento de que isso nos é familiar em alguma medida.
No testemunho de passe de Irene Kuperwajs, ela escreve: À luz de minha experiência analítica me interrogo de que modo lalíngua afetou meu corpo e de que maneira se teceu em minha neurose o nó entre significante, objeto a como núcleo elaborável do gozo e o impossível do gozo feminino. Um acontecimento de corpo precoce me acompanhou durante os primeiros meses de vida, o “espasmodesoluço” escutado sempre em minha infância como uma holófrase. O relato familiar tantas vezes repetido era de que retinha o ar, o grito e o pranto. O que foi lido ao final de analise como a “insondável decisão do ser que fixa precocemente o gozo ao silêncio”.
Sua análise iniciou aos 26 anos, devido a uma inibição para falar. Sofria por ser objeto do olhar quando se expunha, e tinha efeitos no corpo como taquicardia e emudecimento. Ao mesmo tempo, padecia de uma tortuosa relação com o saber: estudava e tudo escapava. O saber ficava do lado do outro. O trabalho de construção da fantasia ganhou precisão: se oferecia ao Outro como um doce (S1), uma balinha a ser devorada e gozar do calar. Situava seu ser de mulher do lado do calar porque acreditava que as palavras eram mortíferas. No final deste testemunho escreve que encontrou sua solução sinthomática – falar, com a voz solta e firme. “O silêncio me habita de maneira viva, diferente do calar da fantasia”. Em outro testemunho ela escreve que se abriu um novo uso do silêncio, no qual pode entrar e sair, já não é não poder dizer, mas saber calar. Pode falar, calar, e fazer falar.
Minha tentativa a partir destes recortes é articular o gozo insensato do supereu que manda de forma imperativa calar, do silêncio do que não se pode dizer porque é impossível. Dois campos de silêncio que tendem a se mesclar nas defesas neuróticas, transformando algumas experiências, em especial as amorosas, em grandes tormentos.
Lacan fez do gozo feminino uma generalização por sua natureza irrepresentável, indizível e ilimitada. Um gozo irredutível que escapa e não todo entra na lógica fálica. Trata-se de uma experiência onde cada um se entrega em seu exílio do Outro sem soltar uma palavra, impossível de dizer, é um acontecimento de corpo fora do sentido – corpo afetado pelo choque com a língua que fez dele um aparelho de gozo. O empuxo ao ilimitado pode se revelar em soluções tirânicas e cruéis, segundo o imperativo insaciável do supereu.
O supereu é um acontecimento de gozo, um empuxo ao além do princípio do prazer. Sua expressão máxima se revela pela ruptura de um equilíbrio, no qual parte do eu se volta sobre si mesmo e que pode ser traduzido pelo imperativo que induz o sujeito ao excesso ou a uma censura. (Campos p. 260)
Nomeado por Lacan de figura feroz, o supereu corresponde às figuras da pré-historia do sujeito e dos seus traumatismos primitivos. Ele apresenta uma faceta em sua fundação que não é recoberta pela linguagem e outra situada e recoberta pelo simbólico, elemento fronteiriço entre real e simbólico. Lacan propõe o supereu como o que há de mais devastador, fascinante e primitivo na experiência de vida do sujeito. A ideia de lei no supereu se reduz em seu todo a uma coisa que não se pode exprimir a não ser como “tu deves”, que chega ao sujeito como uma palavra desprovida de sentido. Lacan denomina o supereu de palavra reduzida ao seu caroço, de palavra reduzida a seu nó, e também medula da palavra, o que nos traz a ideia de algo que carrega em si a própria potência.
O supereu é um enunciado discordante, cego, repetitivo e ignorado na lei simbólica. Se trata de um enunciado registrado e promovido ao primeiro plano do inconsciente por um evento traumático, sem tradução simbólica, que reduz a lei da linguagem a um caráter inadmissível, que não se integra. Observa-se que num processo de análise, o supereu se expressa como inibições, bloqueios, paradas na fala do sujeito. Assim, torna-se necessário aguardar um longo tempo para que o sujeito se desembarace das tramas do supereu.
Nos testemunhos de passe de Irene aparece a voz como objeto na relação com o gozo feminino (dizível-indizível). Quando há silêncio o impossível de dizer se satisfaz substitutivamente como o objeto do fantasma. Ela faz todo um percurso para ver como o silêncio se articula ao fantasma. O sintoma da inibição que a levou para a análise, na experiência analítica, é depurado até constituir-se como sinthoma. Em outro testemunho, ela escreve: “quando me separei do supereu, do gozo do supereu, que pude soltar a própria voz”. Separa então, o calar do silêncio. O silencio muda de estatuto, o habita de forma mais viva.
Com a escrita do testemunho diz “continuo a escrever meu silêncio”, faz uma borda ao indizível, para poder cernir algo do impossível.