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RESENHA LIVRO LACAN CHINÊS
Paula Nocquet
O livro Lacan Chinês de Cleyton Andrade surpreende pela sua originalidade ao passo que permite compreender o que possibilita a Jacques Lacan pensar no ato de leitura em uma experiência de análise. Sabemos que, dentre as faculdades atribuídas ao analista, uma delas é saber ler. Não se trata apenas de saber ouvir, mas de saber ler o inconsciente, estamos portanto em termos de escritura. Mas, como pensar a separação entre fala e escrita?
Esse talvez seja o primeiro convite essencial para pensarmos em ler este trabalho que realiza uma imersão histórica, cultural e política da China elegantemente entramada com as considerações lacanianas. Com transfundo clínico, não se propõe tomar China como um ideal nem subordiná-la aos pressupostos psicanalíticos, mas sim, somos convidados a percorrer os caminhos traçados pelo interesse de Lacan pela língua e escrita chinesa.
Tão logo no início do livro desaparece a sensação de que seria difícil o aproveitamento da leitura para quem desconhece a cultura e língua chinesa. Há uma gentileza no livro que permite ao leitor ir navegando pelas águas estrangeiras, ponto que considero fundamental no que tange à própria estruturação do trabalho que converge com o tema em questão, um convite para o estrangeiro.
A escrita chinesa, sua poesia e caligrafia mostram a relação com a interpretação e ato analítico, interesse germinal do autor. Com isso, nos mostra como se viabiliza o escrito através da palavra, a separação entra a fala e a escrita, permite elucidar que não há leitura única do que se escreve, e de como os jogos de escrita ou a manipulação dos caracteres chineses permitem articular ou desarticular sentidos, aproximando-os, finalmente, dos nós borromeanos.
Também, destaca-se a influência canônica de Françoise Cheng para, dentre outras, pensar a escrita e a letra em relação com o corpo. Neste período do ensino de Lacan em que a linguagem passa a estar articulada com o gozo, traz a escrita chinesa, tanto o caractere como sua caligrafia, inseparáveis da dimensão do corpo e sua pulsão. Na utilização do pincel denota-se como, em seu gesto, trata-se sobretudo de uma questão de movimento que implica o corpo e suas ressonâncias diretamente. O que por sua vez, evidencia a função do traço e da letra.
Assim, além de ser uma ferramenta valiosa que nos permite enriquecer a leitura do seminário 18, há todo um recorrido fundamental para a clínica lacaniana. Inclusive a do pensamento chinês em sua preocupação com o vazio e a maneira em que a arte, especialmente a poesia, busca apreendê-lo em suas obras. O autor aclara: a poesia que Lacan traz no seminário 24 não qualquer poesia.
Para encerrar, gostaria de destacar quando Cleyton descreve um episodio ocorrido em 1970, em que Lacan escreve no quadro caracteres chineses, mas nada faz com eles, nada comenta, silêncio. E prossegue com seu seminário normalmente. A tradução desse escrito seria “peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso”. O que isso implica? De alguma forma, está referido ao que não pode ser falado. Por sua vez isso me recordou ao que traz Miller, em o Ultimíssimo Lacan, quando intitula um capítulo como o Real não fala. O real não fala, aquilo que não tem marcas de significação mas de gozo, está na ordem do escrito. A psicanálise se orienta para o real, onde as leituras do inconsciente vão bordejando e recortando o ilegível. Lacan demonstra uma não relação, uma escrita separada da fala e ilegível, que incita ao trabalho de uma leitura, uma leitura sempre estrangeira em relação ao que se lê.
Por isto, das diversas preciosidades do livro, uma das que ficam é denotar que foi preciso que Lacan recorresse a uma língua completamente estrangeira para pensar seu ensino e prática. Quase como se ficasse no horizonte, um recordatório desse sotaque de fora, desse estrangeiro sempre presente na psicanálise. Acima disso, é o que permite a Lacan, quem sabemos sustentava ser freudiano, a considerar que, talvez por ter estudado chinês, fosse lacaniano.