Boletim da VI Jornada da EBP – Seção Sul Editorial – P U L S…
Referências e citações #2
A equipe da Comissão de Referências Bibliográficas da VI Jornada da Seção Sul, acompanha a pulsação do Boletim desta vez a partir do eixo O gozo e a época. Conhecemos a frase de Lacan, “que antes renuncie a isso portanto quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua da Babel e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas.”[1]. Se nos deparamos com a época e o gozo que entra pela porta de nossos consultórios, como podemos então, pensar essa espiral?
Miller[2] esclarece que a espiral se refere à expansão a partir de um ponto central de uma curva que vai se distanciando, mas que passa sempre pelo mesmo ponto. Quer dizer que implica o desenvolvimento, mas também a repetição, não se trata de um movimento circular, mas de uma espiral, que há o que se renova e ao mesmo tempo, há um eixo central. Encontramos nisto o impulso próprio destas referências e sua leitura para movimentar um desejo de pesquisa, a transmissão também diz respeito a passar novamente pelo que já foi escrito, para introduzir algo novo. Aqui trabalhamos ao redor de determinadas extrações de Freud, Lacan e Miller, à espera de que possam ser parte da espiral, num convite a fazê-las corpo e repensá-las, no que tange a nossa época hoje.
Em adendo também contamos com a elaboração de um breve texto que fez corpo neste trabalho de extrações a partir de Televisão de Lacan. Mais, ainda, poderão encontrar citações outras que nos fisgaram ao redor do tema de nossa Jornada, através das redes sociais.
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SIGMUND FREUD
“O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social.”
Freud, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Obras Completas, vol. XVIII: Além do princípio do prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.91
“A religião estorva esse jogo de escolha e adaptação, ao impor igualmente a todos seu caminho para conseguir felicidade e guardar-se do sofrimento. Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência. A este preço, pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual”.
Freud, S. Obras completas volume 18 – O mal-estar na civilização (1930-1936). São Paulo: Companhia das letras, 2010, p.42
“O fato de a educação da criança poder exercer uma poderosa influência, em favor ou em detrimento da disposição à doença a ser considerada nessa soma, é, no mínimo, muito provável, mas aquilo a que a educação deve aspirar e onde ela deve intervir, isso ainda parece inteiramente discutível. Até o momento, ela apenas estabeleceu como tarefa a dominação, mais corretamente com frequência a repressão das pulsões; o sucesso não foi satisfatório, e, onde se viu êxito, isso ocorreu em favor de um pequeno número de seres humanos privilegiados de quem não exige nenhuma repressão pulsional.”
Freud, S. Histórias Clínicas. Análise da fobia de um garoto de 5 anos. (Caso Pequeno Hans) (1909). In: Histórias clínicas. Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. Autêntica, 2021. p.324
JACQUES LACAN
“… se continuamos seguindo Freud num texto como o Mal-estar na civilização, devemos formular isto, que o gozo é um mal. Quanto a isso Freud nos guia pela mão – ele é um mal porque comporta o mal do próximo. (…) é o que Freud diz. E o diz no princípio mesmo de nossa experiência. Ele escreve o Mal-estar na civilização para nos dizer isso (…) é o que ele chama de para além do princípio do prazer.”
Lacan, J. O seminário, livro 7:A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.p.225
“Se há uma ética da psicanálise – a questão se coloca-, é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação. (…) ela implica, propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida.(…) Aliás, é também na dimensão cômica…”
Lacan, J. O seminário, livro 7:A ética da psicanálise . Rio de Janeiro: JZE, 1991.p.374-376.
“a felicidade (…) ninguém sabe o que é. Se acreditarmos em Saint-Just, que o disse ele próprio, a felicidade se tornou desde essa época um fator da política. Trataremos aqui de dar corpo a essa noção mediante um outro enunciado abrupto, que é (…) central para a teoria freudiana – não há felicidade a não ser do falo (…) no entanto o que a teoria freudiana mais acentua é que só o falo pode ser feliz – não o portador do dito cujo.”.
Lacan, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p.69
“Quem pode, em nossa época, sonhar sequer por um instante em deter o movimento de articulação do discurso da ciência em nome do que quer que possa acontecer? As coisas, meu Deus, já estão aí. Elas mostraram aonde vamos, de estrutura molecular a fissão atômica. Quem pode pensar sequer por um instante que se poderia deter aquilo que, do jogo de signos, de inversão de conteúdos a mudança de lugares combinatórios, provoca a tentativa teórica de pôr-se à prova do real da maneira que, revelando o impossível, faz dele brotar uma nova potência? É impossível deixar de obedecer ao mandamento que está aí, no lugar do que é a verdade da ciência — Vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais.”
Lacan, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p.97
JACQUES-ALAIN MILLER
“O que se esboçava em 1973, e que Lacan apontava, hoje nos é plenamente contemporâneo. E pode-se constatar um esboço de que, em breve, só haverá o mesmo, com a rebelião das diferenças. E esse universo homogêneo, ou em vias de homogeneização, deixa sem referência o modo de gozo. (…) O que é especialmente contemporâneo é o fato de estarmos embaraçados pelos modos outros de gozo.”
Miller, J-A. Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. tradução: Celso Rennó Lima; texto estabelecido por Angelina Harari e Jésus Santiago. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005,p.154
“Creio haver duas noções. Primeira: fundamentalmente, o modo de gozo é relativo ao Outro e se situa sempre em relação a ele. Segunda: há um deslocamento histórico que vai do Outro ao pequeno outro, como objeto a, e, com o modo de produção capitalista, o gozo de hoje é mais extraviado que um outro. Para poder situar nosso modo de gozo em relação ao Outro, é preciso estar separado dele. Ora, um traço do universo contemporâneo é que o Outro desaparece. E o que está no diagnóstico, na profecia lacaniana sobre o racismo, que evoca o colonialismo como imposição do modo de gozo, digamos, ocidental, aos povos que gozavam de outra maneira, que tinham outro modo de gozo.”
Miller, J-A. Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. tradução: Celso Rennó Lima; texto estabelecido por Angelina Harari e Jésus Santiago. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.154
“Lacan decía que la ley del mercado nos impone cierta dimensión del Otro – el Otro que calcula – en la que el goce se anula, pero se produce un plus. Se intercambia goce por significante y el Otro se desertifica, pero queda algo (…) ¡Hablad, hablad, siempre quedará algo!”
Miller, J-A. Respuestas de lo real. Buenos Aires: Paidós, 2024, p.67
“Cadê o gozo?” e Televisão
Em 1974, Lacan se endereça à televisão no mesmo tom e estilo de seus seminários, não diferencia o público. É surpreendente a quantidade de assuntos abordados nessa entrevista que nos faz pensar sobre a nossa época e sobre a clínica atual.
De início, Lacan responde a uma pergunta sobre o inconsciente, sem deixar de fora o gozo aí implicado. Diferencia a psicanálise da psicoterapia, colocando esta última como algo que leva ao pior. Chama a atenção para a suposta caridade do Santo, dizendo que este sim faz descaridade, pois presta-se a bancar o dejeto. Lacan comenta sobre o discurso da ciência que irrompe o real e sobre o discurso capitalista que não comporta nada de progresso. Discursos que influenciam o modo de gozar no mundo. O tédio, a morosidade dos jovens entregues a relações sem repressão, a tristeza e a depressão são alguns dos sintomas situados nesse texto. Sintomas que continuam atuais e bem presentes na clínica. Lacan chama a atenção para outro sintoma, a escalada do racismo que, ao impor o gozo próprio em outrem, toma-se assim o Outro como subdesenvolvido.
Por fim, essa entrevista, tão densa quanto atual, aborda diversos assuntos no que tange o gozo na clínica e no social. Transcrita e compilada nos Outros Escritos, Televisão, torna-se leitura imprescindível para nos ajudarmos a refletir sobre o tema da VI jornada da EBP, Seção-Sul: “Cadê o gozo?” e seu eixo “o que diz a época e a clínica?”.
[1] Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, p.322
[2] Miller, J-A. Punto de Capitón em: Polémica Política. España: Ed. Gredos, 2021, p. 31