#04 - SETEMBRO 2023
Que bússola é essa? Ressonâncias a partir do argumento de Nohemí Brown
Por Louise Lhullier (EBP/AMP)
“Todo mundo é louco, isto é, delirante”. Nohemí destaca este aforisma lacaniano como bússola colocada por Jacques-Alain Miller para a prática contemporânea da psicanálise e para a leitura do último ensino de Lacan e extrai daí consequências. Entre elas, a extensão da categoria “loucura” para todos os seres falantes, já que, tomando como norte o real, toda a produção de saber sobre a sexualidade, sobre o gozo do corpo, é, por definição, um delírio, pois não há um programa natural que ordene a relação sexual entre os humanos. Nessa perspectiva, inventar um saber a partir dessa falha é delirar. Todos delirantes.
Compartilho com Nohemí o interesse em manter a interrogação sobre essa bússola e suas consequências. Nesse sentido, trago para esta conversa três referências que me ocorreram a partir da leitura de seu texto.
A primeira delas é o texto de Miller A invenção do delírio [1995], onde apresenta
“uma forma de generalizar o conceito de delírio”. Fica implícito aqui que há mais de uma. Que forma é essa? Cito Miller: “Na medida em que o eu de cada um é delirante, um delírio pode ser considerado uma acentuação do que cada um traz em si, e que é possível escrever como: deliryo.”[1].
No texto de Miller, podemos acompanhar a elaboração que o conduz a dizer, através do binômio S1-S2, que todo saber é delírio e o que o delírio é um saber. Ou, como escreveu Nohemí, “O delírio é uma invenção de saber”. Uma invenção sob a forma de um discurso articulado.
Segunda referência: A loucura nossa de cada dia, por Graciela Brodsky, que explicita sua intenção de distinguir entre loucura e psicose. Refere-se à primeira nos seguintes termos:
[…] cada um de nós, na intimidade de sua vida, mantém sua maluquice pessoal, sua loucura própria que o leva a fazer dieta o dia inteiro e a esvaziar a geladeira à noite […] a lavar as mãos quarenta vezes por dia por mais limpas que estejam […] a desaparecer quando é preciso estar presente, a não fazer um exame quando é preciso fazê-lo.[2]
Nesse texto, com base em abundantes referências, Brodsky se dedica a esclarecer por que podemos dizer que todo mundo delira, que todo mundo é louco, com base em uma seleção de oito referências de Miller, que ela vai desenvolver uma a uma.
Mas o que retenho aqui é sua posição decidida: a loucura que está para todo mundo não se confunde com a psicose, não é a mesma coisa. Creio ter lido esse posicionamento também no texto de Nohemí, onde não encontrei o significante psicose. Aliás, essa tem sido também a minha posição.
No entanto, deparei-me com uma conferência ministrada em 2021 na Universidade de Buenos Aires por Marie-Hélène Brousse, onde ela aborda o mal-estar inerente à cultura, associado à nossa condição de seres falantes, que nos enlouquece. Isso é algo que já nos é familiar. A terceira e última referência que trago aqui, ao contrário, veio acrescentar algo que me pareceu meio fora dos trilhos em relação a outras leituras. Por isso mesmo proponho acrescentá-la a nossa pesquisa. Trata-se de uma hipótese proposta por Brousse nos seguintes termos:
[…] o fato – talvez vá lhes parecer um pouco estranho, mas é uma hipótese razoável – de que o período atual é um período no qual as psicoses, a organização é o ordinário, é de todos. Na psicanálise, Jacques-Alain Miller havia introduzido e feito um seminário sobre o que ele chama a psicose ordinária, o que é uma novidade. Se trata de uma organização psíquica onde o universal, a afirmação universal “Todos os […] são […]” funciona, mas sem a exceção paterna. Quer dizer, sem o ao menos um que, como ponto de exceção, garanta o universal. Isto é, esse ponto exterior ao conjunto que permite que o conjunto funcione universalmente. Eu penso que, hoje em dia, a organização psicótica é universal, se tornou universal para todos os seres falantes, porque precisamente o que caracteriza nossa época é a queda – Lacan disse a evaporação – do Nome do Pai. E aqui não se trata do papai, qualquer que seja a acepção – o Papa católico ou o pai de família -, se trata do Nome, do valor do Nome, ou seja o valor do que representa alguém na ordem simbólica. Então, lhes proponho sustentar que hoje em dia, com a fragmentação, a evaporação, o frágil que se tornou a instância da autoridade simbólica, o que acontece é que todos estamos na ordem da psicose.
Mais adiante em sua fala, ela reafirma:
Sustento que a psicose é o regime ordinário do psiquismo hoje. Deixou de ser uma estrutura patológica que a meu ver – a partir de minha prática analítica -, a psicose no sentido estrutural antigo não é nenhuma dificuldade no laço social. Ocorre que pode ser um coringa (joker) como se vê muito bem, por exemplo, na patologia de alguns chefes de Estado atuais. [3]
Fica aqui a provocação: será que o “Todo mundo é louco, isto é, delirante”, algo que vale para todos os seres falantes, que é de estrutura, vai se equiparando, no mundo atual, a “Todo mundo é psicótico”, como um efeito da época sobre as subjetividades?