skip to Main Content

Quando a bússola ressoa como pergunta.

Por Licene Garcia

O eixo III, intitulado “Que bússola é essa?” sustentado pela escrita de Nohemí Brown (EBP/AMP), pode ser lido como uma pergunta que nos orienta clinicamente quando tomamos como bússola o aforismo lacaniano: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”.

O texto em si condensa uma pergunta que nos anima, orienta e convoca ao trabalho. Seguidos por esta bússola, podemos tomar a escrita do eixo como uma lupa com a qual Nohemí nos traz pontos a se olhar mais de perto, com cuidado. Assim, com esta lupa em mãos, podemos nos servir de algumas consequências apontadas no texto, como uma orientação em nossa prática clínica.

“Todos delirantes” nos aponta que em relação ao saber sobre o modo que o gozo que toca o corpo há para todo ser falante uma carência. Algo que Lacan precisa com o termo “ruptura do saber”[1], enquanto aquilo que nos faz falar solitariamente. Cito Lacan: “essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever, mas ela é mesmo o que se escreve por excelência, pois ela é o que, de ruptura do ser, deixa traço”[2]. Nesse sentido, retomamos a consequência extraída por Nohemí de que a construção de um saber sempre tocará no mais singular, no modo que tal traço, enquanto marca de gozo, tem para cada um a estrutura de delírio. “No inconsciente dos falantes não há possibilidade de encontrar a fórmula, por mais metafórica que seja, para saber qualquer coisa que diga respeito ao gozo do outro sexo.”[3].

Seguindo Esthela Solano, não há chance de o parlêtre sair dos efeitos de sentido com os quais ele constrói o próprio mundo. Com o axioma “Todo mundo é louco, ou seja, delirante” o que se faz é interrogar o conceito ilusório de cura, de uma terapêutica que condensaria um ideal de normalidade. Deste modo, uma clínica que se orienta pelo real estaria ligada aos arranjos e desarranjos que o parlêtre encontrou para manter enodados – real, simbólico e imaginário – fazendo de tal amarração singular, um nó que permite a cada um sustentar o laço com a vida. Daí a importância do que Nohemí aponta: “Se falamos de ensino, há algo que não pode ser ensinado, especialmente com relação ao real”.

Quando Lacan propõe o termo lalíngua, o que ele faz é uma disjunção entre fala, estrutura da linguagem e comunicação. Lalíngua seria a língua própria, originária de cada um, carregando por isso uma relação com o gozo.

O ponto de partida para o axioma “a relação sexual não existe” é a constatação do que há. “Há gozo”. Isto é um fato. Dizer que há gozo, nos permite colocar o gozo onde ele está, na experiência de habitar um corpo vivo. O gozo é no corpo e não fora dele.

Só há psicanálise de um corpo vivo, um corpo que fala, ainda que, o que faça um corpo falar, seja o que Lacan qualifica como um mistério. Se há gozo, o que nos orienta na clínica é que o que há, é o real.

Nas palavras de Nohemí Brown: “é importante considerar as consequências dessa bússola. Que bússola é essa? Como nos orienta na escuta, na nossa prática e poder formalizá-la na construção do caso. […] É disso que se trata uma bússola: como nos orientarmos no mar de conceitos e ditos do paciente.”

Por isso, uma análise de orientação lacaniana é o que visa tomar a fala como modo de satisfação que toca o corpo, para além da decifração e equivocação dos sentidos, uma análise conduzida ao real, aponta para o modo que o gozo toca o corpo do parlêtre. O gozo enquanto gozo do Um, que não se dirige ao Outro, marca da experiência solitária de satisfação em habitar o corpo próprio.


[1] LACAN, Jacques. Seminário, livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 163.
[2] Idem 1.
[3] SOLANO-SUAREZ, Esthela. Delirios y despertares: Una lectura estructural del delirio. In: Virtualia, n.42, mai.2023. Disponível em: https://www.revistavirtualia.com/articulos/945/locura-psicosis-delirio/delirios-y-despertares
Back To Top