#04 - SETEMBRO 2023
Princípios diante da causa: sobre a entrevista de Lacan com a Mademoiselle B.
Diego Cervelin
Licene Garcia
Psicanalistas. Participantes das atividades da EBP-Seção Sul
Há momentos em que as indicações de acolher e aguardar podem surgir como encaminhamentos cruciais em uma experiência analítica. Longe de isso implicar uma posição meramente passiva, trata-se, antes, de colocar em ato um saber que não se desfaz do furo em torno do qual uma existência se constitui. Algo disso acontece no caso de Mademoiselle B., uma jovem internada em uma instituição psiquiátrica e entrevistada por Lacan em 1976[1]. Entre perguntas diretas e respostas entrecortadas ou quase evasivas, podemos acompanhar Lacan procurando recolher, ponto por ponto, aquilo que haveria de mais singular no relato da Mademoiselle B. Seus questionamentos procuram circunscrever o núcleo do mal-estar, os personagens mais marcantes, os afetos, os significantes que se destacam e como eles se destacam na trama.
Enquanto isso, Mademoiselle B. permite perceber que há vezes em que as respostas valem menos por aquilo que elas poderiam corresponder e mais pela manifestação da errância da letra – letra mobilizada e recolocada em ato na fala. Assim, é possível perceber que, em sua vida, circula uma demanda por um lugar para si – um lugar grande, diz ela; um lugar que teima em não se concretizar, apresentando-se inclusive no seu oposto de abjeção. Essa condição parece começar na medida em que ela assume a posição da substituta transitória da mãe (quando ela se ausenta para os partos dos irmãos) e implica uma sucessão de empregos de curta duração, os quais também envolvem o cuidado dos filhos de outras mães. Nem mesmo o encontro amoroso e o nascimento de um filho (do qual se encontra separada) conseguem formular alguma borda em sua vivência.
Aliás, internando-se às vezes voluntariamente nas instituições psiquiátricas, Mademoiselle B. diz flutuar e querer viver suspensa como um vestido. Na discussão do caso, essa fala adquire um caráter orientador. Lacan não deixa de destacar que Mademoiselle B. padece da “doença de ter uma mentalidade”[2]. Contudo, o mais determinante parece estar precisamente no modo como essa doença se apresenta: “sem se cristalizar em uma doença bem caracterizada”[3]. Ou melhor, “a doença mental… sim, é bem difícil pensar os limites [dela] […] Ela não tem a menor ideia do corpo que ela tem para colocar dentro deste vestido. Não há ninguém para habitar a vestimenta. Ela é este pano. Ela ilustra o que eu chamo de semblante. Ela é isto. Há uma vestimenta e ninguém para se colocar ali dentro. Ela não tem relações existentes, a ideia de relações entre um certo número de pessoas, apenas com vestimentas, é tudo o que existe para ela”[4]. Essa existência – ainda – sem corpo redundaria, segundo Laurence Bataille (presente na discussão), numa procura incessante pela doença mental mais definida. Diante disso, Lacan sugere que essa doença não lhe seja dada e oferece outra orientação clínica: Mademoiselle B. quer ser valorizada; então, se possível, que a valorizem.
Mademoiselle B. recoloca os princípios diante da causa que nos orienta em nossa prática: é preciso que não nos esqueçamos de que todo falasser inventa algo para fazer frente ao que sempre insiste em retornar, o real. “Devemos sempre nos perguntar o que é um nó e por que foi desatado […] Nossa clínica é feita daquilo que não está circunscrito pelo simbólico, pois o simbólico não capta tudo o que é real, e é disso que cuidamos”[5].