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Paradoxos da fragmentação: identidades, totalização e despatologização. Impasses de um tempo na experiência clínica.

Tainã Pinheiro[1]

O contemporâneo parece estar marcado pela experiência da fragmentação. Uma das expressões mais eloquentes desse processo é a formação de grupos cada vez mais particulares, demarcando identidades específicas que se organizam, no interior da sociedade, como comunidades cujos membros podem desenvolver, entre si, laços fraternais. Não foi e não é sem enfrentamentos, tensões e resistências, que esses grupos se formaram para reivindicar direitos nem sempre reconhecidos, às vezes sequer identificados por aqueles que não têm esse lugar-de-fala.

A força dos grupos identitários passa, como alerta Jacques-Alain Miller em Todo mundo é louco, por uma disputa pela despatologização, ou seja, aquilo que outrora fora visto como enfermidade e, portanto, como designante do lugar em uma hierarquia social baseada, entre outros, no binômio saúde-doença. Sendo assim, já não haveria deficiência auditiva, senão surdez como característica e não como menoridade, tampouco, no exemplo trazido por Miller, esquizofrenia, mas grupos que ouvem vozes. Reconhecimento social é o que se busca.

Todo esse processo passa por forte disputa nos termos do reconhecimento jurídico e da ampliação da democracia, com a consequente expansão de direitos. A lutas por mudanças na legislação nos termos da retificação de nomes e por ações afirmativas na Universidade e fora dela, são exemplos desse processo. Disputa-se, ademais, o vocabulário, o que pretende levar, tendencialmente, à supressão de palavras preconceituosas e discriminatórias incrustradas na fala cotidiana; e a legislação, de forma que se torne crime o não-reconhecimento das distintas identidades, especialmente quando se traduzem em palavras e ações violentas, mesmo que silenciosas.

Nesse quadro, a clínica se coloca frente a um impasse. A despatologização significa a suspensão do páthos, ou seja, com ela pode também enfraquecer-se a possibilidade de afetar e deixar-se afetar no trabalho clínico, tornando-se ainda mais difícil o acesso às fendas do inconsciente. Se a clínica se ocupa da singularidade do sujeito, então é porque o processo se dá na relação entre analista e analisando, de maneira que o risco de petrificação da identidade leva consigo o risco de sua impenetrabilidade.

A clínica, então, argumenta Miller, não tem mais lugar, mas tem. Talvez tanto lugar quanto a universalidade não tenha, mas tenha, desde que as identidades não sejam enrijecedoras ao ponto impedir possibilidades de troca, transferência e enlaçamento com um outro que não seja somente o idêntico a si mesmo; uma vez que, em alguma medida, se possa consentir com a alteridade, e desde que cada um possa deixar-se afetar por essa discreta fraternidade da qual falava Lacan, entre analista e analisando, ou como destacou Maria Teresa Wendahausen no texto Salvar a Clínica:

Aqui, talvez, possamos tomar o título desta jornada, “Louco-motiva: a cada um seu acento”, desde esta posição do analista, ou seja, desde esta posição de não saber e da docilidade que ela implica, para que cada um dos que nos procuram possa encontrar o acento no trem dos “tempos que correm”.

A negação de que a dimensão patológica é constitutiva de qualquer sujeito falante, e portanto faltante, parece carregar em si a pretensão de um algo todo, de uma assepsia insustentável e quiçá autoritária. Desastrosa quando levada a cabo. Sem páthos, apático. Sem páthos não há afetação, e sem ela, tampouco parece ser possível a experiência de uma análise.


[1] Psicanalista, Doutora em História da Educação.
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