Licene Garcia A Comissão da Diretoria de Biblioteca da EBP-Seção Sul, nesta 7ª edição extraordinária…
Para um começo de conversa… sobre as loucuras de amor
Por Diego Cervelin

Vou apresentar este texto em torno de alguns aspectos, algumas questões que foram surgindo no decorrer das reuniões do nosso GT sobre “As loucuras de amor”. Para isso, também vou me remeter às observações feitas pelo Oscar Ventura no texto “O Amor. sempre Outro”[1], que, em 2020, fez parte da 24a Jornada da EBP – Seção Minas, em torno das mutações do laço social e do novo nas parcerias. Aliás, esse texto de Oscar Ventura já começa com um título bastante curioso: não só porque ele apresenta “amor” e “outro” com maiúscula, mas porque ele também não respeita as normas da pontuação, deixando “sempre” em minúscula. Esse título assim tão diferente me parece se concentrar de maneira bem especial sobre aquilo que nos toca nas experiências de amor: as vicissitudes discursivas, ligadas ao grande Outro, aos arranjos e desarranjos entre falta e desejo; mas, além disso, as implicações no gozo e até mesmo naquele gozo – gozo do Um – que, inscrito numa dimensão tão basilar da vida pulsional, é Outro inclusive ao significante, ressoando baixinho, mas com força suficiente para fazer ruído entre os ditos e, assim, produzir equívocos.
Esse “sempre Outro”, por si só… já não nos permitiria considerar que, quando falamos de amor – mas de amor como um laço entre falasseres – também nos colocamos em um terreno que nenhum ideal dá conta de realizar e que não está totalmente definido pelas regras, nem pelas repetições? Sem ser necessariamente transgressivo, esse terreno não poderia se mostrar fértil para aquilo que vem por contingência? Já temos notícias de que até mesmo uma das últimas invenções do mercado financeiro – e falo do PIX – deixou de ser apenas uma forma de envio rápido de dinheiro para se transformar em meio de paquera. Bom, talvez isso não baste: pode ser que isso não ressoe no outro; pode ser que isso não engendre um querer saber sobre aquilo que, do encontro, se escreve. Mas, de repente, por que não tentar?
Oscar Ventura pontua que, na repetição, há “uma tentativa, sempre falha, de outra coisa [de tal sorte que uma] experiência analítica não deixa de ser uma máquina de explorar os limites da repetição no que concerne ao amor”[2]. Diante disso, Lacan foi além de Freud ao considerar um amor não mais condicionado pela lógica da complementaridade que viceja na fantasia, mas que, como invenção e descompletando as significações, poderia acolher algo do acontecimento de corpo sem ter que necessariamente anular as diferenças entre gozo do outro e gozo do Um[3]. Diferente daquele amor condicionado pela fantasia, haveria um amor com condições, portanto; um amor que “sabe quais são as condições próprias e leva em conta as do outro”[4]. Nesse ponto, Oscar Ventura acrescenta uma ressalva que me parece de maior importância, ou seja, que “não convém […] escrever as invenções no campo do ideal […] é necessária uma disjunção entre invenção e ideal para dar um alcance possível a esse pequeno detalhe de cada um que possa oferecer-nos, afinal, a possibilidade de algo novo”[5].
Isso, no entanto, nos coloca diante de uma dificuldade extra que talvez não esteja restrita ao horizonte do novo amor do final de análise, mas que também pode incidir sobre aquilo que é novo no amor em nossos tempos. Nesse sentido, se, por um lado, já contamos com amostras bem palpáveis de que, no domínio do discurso capitalista, há uma forclusão do amor; por outro, podemos perceber que os ideais não só se multiplicam ao ponto de se transformarem em moeda falsa como eles também se revestem de uma carga que, às vezes, se inscreve com força de imperativo insensato e obsceno. Ao mesmo tempo, na medida em que consideramos essa fragilização das antigas fórmulas da narrativa amorosa, seja pela pluralização dos nomes-do-pai, seja pela ascensão do objeto a ao zênite do social, tampouco parece viável ou novidadeiro refugiar-se na nostalgia dos ideais de outros tempos e muito menos numa aposta do retorno deles, ainda mais porque isso, muito facilmente, se materializa como um rechaço violento – e em nada menos insensato e obsceno – daquilo que diz respeito ao não-todo.
Por outro lado, justamente quando as labaredas se espalham por todos os cantos, parecem se tornar cada vez mais importantes aqueles momentos em que algo do gozo do Um aponta para um impossível de dizer. Afinal, mesmo quando ele inquieta e estranha os sujeitos, mesmo quando ele irrompe e até transborda se atravessando na vida dos Uns e dos tantos outros, não resistiria exatamente aí nesse impossível uma capacidade de localização e inclusive de orientação que nenhum ideal, novo ou velho, jamais será capaz de descortinar? Ou melhor, sem solapar esse acontecimento na negação do mal-estar ou no interesse pela sua decifração final, não seria ainda mais importante dar-se conta de que esse gozo tão singular pode adquirir um valor de uso que, até então, havia sido totalmente ignorado? Em outras palavras, por mais precário e basilar que isso seja, não se configuraria justamente aí um modo para – quem sabe –, no meio das labaredas, não morrer demais? Aliás, não morrer demais já faria muita diferença, especialmente se consideramos que, de acordo com Oscar Ventura, “uma das formas possíveis de nomear o amor mais digno nesta época […] é aquele que possa sintomatizar-se de tal maneira que permita não fazer do gozo pura obscenidade”[6].