Teresa Pavone (EBP/AMP) É com satisfação que apresento o VIII Boletim da Seção Sul ao…
OS MORTOS-VIVOS E A PSICANÁLISE: DOS ZUMBIS AOS ARREBATADOS PELA IMAGEM
Valéria Beatriz Araujo

O Livro de Henri Kaufmanner[1], apresentado na atividade de Noite de Biblioteca da Seção Sul, é uma obra que toca de perto o mal estar contemporâneo. Destaco dois pontos que me atravessaram nessa leitura: O estatuto da morte em nosso tempo e o arrebatamento.
I-O estatuto da morte em nosso tempo: O autor coloca como questão: “Estaríamos diante de uma mudança no estatuto da morte em nosso tempo e, como consequência, sua presença mais evidente nos corpos?” [2]
Seu argumento traz os craqueiros tomados como mortos-vivos que se fazem visíveis:
“Por que essa mostração do mortífero de sua adição?” Ele se pergunta.
“A mostração de uma errância entre vida e morte, numa relação de continuidade, não de ruptura?” [3]
Sua presença, segundo o autor, reflete uma mudança no estatuto da morte na atualidade, onde morrer, para um morto-vivo, não seria apenas um destino, e sim “uma presença que se faz perceber no corpo, expressa sua redução a um mais- além, a um resto de cultura, uma encarnação da morte em vida”.[4]
Extraindo consequências, podemos pensar a presença de novas formas de violência, tanto nos acontecimentos sociais como na prática clínica. Vemos, conforme aponta Henri, o esvaziamento das soluções simbólicas coletivizantes, e os novos agrupamentos passando a se dar pelas semelhanças nos modos de gozo.
A partir deste novo estatuto, os craqueiros, os mortos-vivos, os zumbis, são “a mitologia contemporânea que dá nome a essas novas afetações dos corpos. E a novas formas de enfrentamento e defesa diante da persistência ineliminável do olhar.” [5]
A esta questão, sobre a mostração do mortífero de sua adição, Henri nos esclarece: “Os craqueiros necessitam de um lugar que os proteja da ação policial truculenta. O fluxo da Cracolândia move-se como um organismo, e sua aparência a de mortos-vivos.” [6]. Um agrupamento que os proteja do Outro, poderíamos dizer. Do olhar do Outro. Ao mesmo tempo se dá a presença de “um laço identificatório que se sustenta não só pelo uso da substância, mas também pela mostração dos corpos. Na denúncia do estrago dos restos, a partir da lógica do consumo.” [7]
A leitura de Henri em relação a este tema complexo vai além, no sentido de elencar fenômenos contemporâneos que atualizam a experiência dos mortos-vivos no cotidiano da cultura, numa ausência de singularidade que os mantêm reduzidos ao consumo e ao seu gozo: os bolsões de miséria, o isolamento dos condomínios, entre outros.
A mudança no estatuto da morte aponta para a aliança da ciência com o capitalismo, resultando, neste caso, numa “sepultura a céu aberto”.[8]
Vidas precárias, como aponta Henri citando Judith Butler, que não são passíveis de luto. A necropolítica, citando Mbembe, ou seja, a redução do corpo a seu valor de uso, deixando-o morrer.
II- O arrebatamento: Neste ponto, a tese de Henri é de que, em nosso tempo, há um efeito sobre os corpos que toca a todos. Somos todos arrebatados pelas imagens, deixando-nos mais alijados, mais afastados de uma representação própria e, assim, meio mortos-vivos.
“Arrebatamento – essa palavra constitui para nós um enigma. Será objetiva ou subjetiva naquilo que Lol V. Stein a determina?” [9], nos instiga Lacan a refletir.
Um encontro com um morto-vivo coloca em jogo uma experiência com o Olhar e com a Imagem. Coloca em jogo a distinção entre olho e olhar. Podemos pensar aí a tensão que pode se estabelecer entre os sujeitos tomados como craqueiros e o Outro, como seres olhados?
Se pensamos com Lacan sobre quem seria o arrebatador e quem seria o arrebatado: “(…) será que um de nós passou através do outro, e quem dela [a criatura] ou de nós se deixou atravessar?”[10]
Para Henri, “a intenção neste trabalho é buscar o que estaria por debaixo de toda representação” [11], numa sociedade “que jamais fecha os olhos, no imperativo da visibilidade, dando a todos o direito a ver” [12].
Passamos do estágio do ver e ser visto para o de ser integralmente visível, de onde se destacam dois pontos:[13]
– A sociedade da transparência se deve ao declínio dos semblantes.
– A presença de videovigilância não diminui a delinquência.
Henri postula que tal constatação se deve à ausência do olhar. A crença no todo da imagem rechaça a divisão decorrente do olhar. [14] E, não sendo vistos, prevalece o imperativo de gozo.
O olhar é o que nos inclui, como seres olhados, no espetáculo do mundo.[15]
[1] Kaufmanner, Henri. Os mortos-vivos e a psicanálise: dos zumbis aos arrebatados pela imagem. Belo Horizonte: Scriptum, 2024.
[2] Op. Cit., p. 18.
[3] Op. Cit., p. 41.
[4] Op. Cit., p. 23.
[5] Op. Cit., p. 24.
[6] Op. Cit., p. 35.
[7] Op. Cit., p. 36.
[8] Op. Cit., 34.
[9] Lacan, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 198.
[10] Lacan, Jacques. Op. Cit..
[11] Kaufmanner, Henri. Op. Cit., p. 85.
[12] Op. Cit., p. 87.
[13] Op. Cit., p. 91.
[14] Op. Cit., 94.
[15] Op. Cit., p. 134.