Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
O que um analista tem que saber-ouvir
Artur Cipriani
Saber suposto e saber sabido
Certa feita, um professor de graduação contou em aula a seguinte anedota: em determinada sessão, certo paciente insistia que o analista lhe perguntasse: “pode perguntar”, dizia ele, e afirmava que o analista sabia as perguntas certas a lhe fazer. Em determinado momento, o analista pergunta: “você gosta de beterraba?”. Seguiu-se a isso, se bem me lembro do conto, um silêncio do paciente, que pode ser interpretado como: estava pensando sobre o ato, pode ter entendido que o trabalho não se localizava exatamente aí, que não parte de um saber do analista. O professor (que era também o analista da história) falou então sobre como era necessário, na primeira oportunidade, desmantelar o sujeito suposto saber para o analisante.
É fácil, quase automático, diria, lançarmos uma pergunta a fim de precisar o que se teria tentado transmitir aí, nessa aula: se isso vale, vale então para qualquer analisante? Não pode servir, em extensão variável, que o analista ocupe para o analisante o lugar do sujeito suposto saber, dadas as diferentes condições de estrutura do sujeito, sua modalidade de gozo, o determinado momento da análise, enfim, a orientação do tratamento? Lembro-me aqui da consideração de Lacan sobre o analista ficar para o analisante como alguém que não sabe nada, ainda que, bom, saiba de algumas coisas, mas isso fica entre nós, pares.
Que coisas são essas que o analista sabe, ou tem de saber? São oriundas de qual dos pés do tripé da formação? Decerto dos três. Essa foi a pergunta que me levou a esse cartel, feito todo (menos o mais-um) de colegas que começaram a clinicar há não muito, ou que estão começando neste mesmo momento, ou que querem começar.
Essa pergunta se ligou a uma questão que, creio, ocorre-me desde mais ou menos o início de minha clínica: o que tenho de saber quando estou prestes a receber o sujeito? E o que devo saber enquanto o ouço? Eflúvios das advertências de Freud quanto às (excessivas) anotações durante a escuta me atravessaram, assim como uma aparente insistência de minha analista de que se trata de ouvir, apenas ouvir o que o sujeito está dizendo – e, num momento seguinte, já pandêmico, quando destacava a importância da ligação de voz em detrimento das mensagens de texto: que se possa devolver algo a ele, mesmo se for o silêncio.
Uma nota que se interpôs a essa fala da analista (a de “apenas ouvir”) foi de que, antes de receber um paciente, se relia as últimas anotações das últimas consultas, saltavam-me aos olhos não poucos significantes, ditos prismáveis em diferentes significações, alguns dirigidos ao analista, etc. Aí, pensava: que bom que dei essa olhada!
Levei a questão para supervisão. Disse-se que a posição de escriba em que por vezes me alocava poderia impedir de ouvir “não o dito, mas o dizer”, “não o enunciado, mas a enunciação”. Sobretudo, o supervisor indicou: e se o trabalho se debruçasse sobre a construção do caso? Foi aí, pois, que desloquei minha pergunta neste cartel de “o que um psicanalista tem que saber?” para “o que um psicanalista tem que ouvir?”.
O que um psicanalista tem que ouvir?
Significantes que se repetem, indicadores do gozo, pontos de referência de estrutura e modalidade; a fantasia, o sintoma, as posições na transferência. Esses são pontos destacados por Berenguer em ¿Cómo se construye um caso?, registro de seminários clínico/teóricos que ajudam a precisar esses elementos que merecem atenção ao longo de uma escuta que também não pode prescindir da adversão contra o saber todo, a previsiblidade a partir do diagnóstico, a sujeição da escuta às impressões do eu do analista, enfim: elementos que podem obstruir a surpresa da experiência de uma análise.
Em certa conferência, M-A. Vieira disse: a gente fica com os conceitos na cabeça, ouvindo, e tentando elaborar alguma coisa. Em certo texto, escreveu Nasio: não concordo com a ideia de que o analista não fique com nada na cabeça enquanto escuta; acho que devemos ter hipóteses. E JAM, citado em Berenguer (2018): “Antes, sem dúvida, é melhor que o analista seja amigo do conceito, que se cultive, que se tenha uma ideia disso cujo produto é ele mesmo e sua prática. (…) Disso se trata na formação do analista, a qual inclui uma cláusula final que é esquecer o que se aprendeu e, com efeito, abrir-se ao outro – que chamamos paciente – como nunca visto, como inédito”.
Para além desses apontamentos, enuncio outro, último, que relaciono com o zen. Está em algo que este tem em comum com a psicanálise: uma orientação no sentido de enxugamento, se não dissolução, do Eu. Disse Françoise Dolto: “(…) minha ideia era de que a cura analítica de um médico só acabava quando ele jamais pensasse em si durante uma consulta. (…) quando vi que, realmente, começava a dar consultas às 8:30h da manhã e encerrava às 13h sem ter pensado em mim nem mesmo por meio segundo, calculei que estava analisada. Verdade ou não”.