Gustavo Ramos (EBP/AMP) Teresa Pavone (EBP/AMP) O VI Boletim da Seção Sul, assim como…
O passe e a autoficção
Gustavo Ramos da Silva[1]
Jésus Santiago (AME EBP/AMP) participou, no dia 22 de junho, da Noite de Biblioteca da Seção Sul da Escola Brasileira de Psicanálise. Na ocasião denominou sua fala de “A escrita real no passe não é autoficção” e nela faz um longo percurso em torno do passe e da leitura feita por Jacques-Alain Miller no seu último livro Comment finissent les analyses.
A questão do passe revela o desacordo de Lacan em torno da questão do final de análise e a formação analítica após a morte de Freud. Nesse ponto, a relação de amor à verdade, de um lado, e da experiência do real, de outro, coloca-nos diante do desenrolar de um tratamento em uma análise. Essa disjunção entre verdade e real se justificaria, haja vista que a primeira se baseia na procura ou busca e o segundo se presentifica no encontro contingente.
No Seminário 18, Lacan vai nos fornecer uma formulação mais acabada do real, sem mais os instrumentos da linguística, deixando o real de ser submetido ao algoritmo significante/significado, passando a ser do registro do semblante. Jésus nos lembra que isso só pôde acontecer por conta da inoperância da ação significante sobre o real.
Tal constatação nos remete à passagem de Miller em Ler um sintoma quando ele fala da escuta do sentido à leitura do fora de sentido, do ternário edípico ao ternário moebiano dos nós. Tal travessia pode ser lida também em chave da experiência do real ao localizarmos um deslocamento da importância do oral, o que se fala, para o escrito, o que se escreve. Nesse ponto, o foco do trabalho analítico, para Jésus, deixa de ser simplesmente o que se fala e o que se ouve para o que se escreve e o que se lê.
Aí entramos em cheio na seara do testemunho de final de análise, afinal de contas do que estamos falando quando ouvimos um passe? Haveria uma correspondência entre o que lá está e a verificação na história do falasser? Jésus afirma que não haveria uma correspondência estrita entre os dados e os fatos da história do sujeito e a verdade da solução encontrada por esse mesmo sujeito. “Em outros termos, a verdade do final de análise não é dedutível dos fatos proeminentes da biografia de um sujeito.”[2]
Aqui já entramos na conversação ocorrida após a intervenção de Jésus Santiago quando ele retoma uma passagem do último livro de Miller na qual ele afirma que quando a experiência do real não prevalece, o testemunho de passe tende a convergir para a autoficção e esta é um gênero literário que ganhou prevalência nos últimos anos devido, é claro, à exposição em caráter global da vida de cada um pelas redes sociais. Qual seria, então, o “gênero” quando ganha prevalência a experiência do real? Jésus postula uma espécie de “gênero witz”, ou seja, o gênero a que pertenceria o passe seria o Witz. Miller é pontual no seu livro: corre-se um risco ao cairmos na autoficção, pois isso pode ser uma regressão ao estádio do espelho, e o AE pode estabelecer uma relação especular com a sua ficção e demonstrar uma impotência em se desapegar de sua história que já se tornou passado, mas um passado não biografável. Miller pontua então que “[…] o AE se contentava muitas vezes em repetir seu primeiro testemunho, mastigando indefinidamente seu tratamento e seu passe, regurgitando um saber que poderia se tornar uma autoficção: regressão ao estádio do espelho”[3], o que pode ser interpretado com o fato de que a ficção não é capaz de desfazer a opacidade do real.
Talvez seja importante fazermos uma contextualização desse termo na literatura e o que disso toca na psicanálise nesse contexto. Foi o escritor francês Serge Doubrovsky quem cunhou pela primeira vez o termo “autoficção” em seu livro Fils de 1977, no qual nos deparamos com uma personagem principal com o mesmo nome do autor do livro. O crítico Philippe Lejeune propõe uma confluência entre autoficção e autobiografia no seu livro O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet e lá afirma ser “[…] uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.”[4] Lejeune postula cinco atos para a autoficção: o primeiro seria em 1973 com o termo “pacto autobiográfico”; o segundo, em 1977, com Doubrovsky; o terceiro, em 1984, com o verbete, escrito por Jacques Lecarme, para a Universalis, mostrando que a “casa não estava vazia”, principalmente após os teóricos da década de 1970, como Roland Barthes, Patrick Modiano, Philippe Sollers etc.; o quarto, de 1989, é a tese de Vincent Colonna, orientada por Gérard Genette, com título L’autofiction. Essair sur la fictionalisation de soi em littérature, na qual encontramos a definição de que uma autoficção é uma obra literária através da qual um escritor inventa para si uma personalidade e uma existência, embora conserve sua identidade real, ou seja, seu nome verdadeiro; e o quinto e último ato, de 1991, quando Doubrovsky organiza o colóquio Autofictions & cie., ainda sob os efeitos de duas recentes publicações na França: Fiction et diction, de Genette, e Temps et récit, de Paul Ricoeur.
O risco que se corre, segundo Miller, em se desapegar de sua história passada vai de encontro ao que o próprio Miller escreve em Sutilezas analíticas: “Uma psicanálise é sem dúvida uma experiência que consiste em construir uma ficção […], mas, ao mesmo tempo, é uma experiência que consiste em se desfazer dessa ficção.”[5] Ao se desfazer dessa ficção e, por conseguinte, da autoficção, o AE encontra como solução final a escrita real, o que só vai ser verificado no caso a caso.