Nohemí Brown Agradeço a Oscar Reymundo e à equipe da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio…
O mais-um e a elaboração provocada no cartel
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Agradeço a Oscar o convite para fazer parte desta Noite de cartéis, à qual foi dado o título “O mais-um, um provocador provocado”, o que indica de saída a função do mais-um no trabalho que se faz em cartel, destacando que ele só provocará um trabalho de pesquisa e elaboração se ele mesmo se deixar provocar.
O texto de Jacques-Alain Miller indicado para nossa conversa hoje, “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”, foi muito bem escolhido para pensarmos como pode acontecer no cartel a provocação e a elaboração.
“Elaboração provocada” foi uma expressão forjada por Pierre Thèves que se aplica a vários dispositivos de trabalho na Escola e no Campo Freudiano, como também na análise de cada um[1] e no trabalho de AE (Analista da Escola). Esse texto de J-A Miller nos leva a pensar e debater sobre a forma bem particular que a elaboração provocada opera no cartel. O cartel encontra em seu trajeto impasses e obstáculos, e devemos sempre nos perguntar como tratá-los para seguir adiante e não sucumbir à impotência e à inércia.
O texto de J-A Miller privilegia o aspecto produção de saber dentre as funções do cartel. O cartel tem uma função epistêmica importante, que é, talvez, priorizada por aqueles que procuram cartéis. Mas não podemos esquecer que o cartel também tem uma função clínica e política que se entrelaça à função epistêmica e que são necessárias ao funcionamento da Escola de Psicanálise proposta por Lacan.
Vamos abordar hoje a função epistêmica do cartel, sua função para uma elaboração de saber que possa ser subjetivado por cada um a partir das surpresas que encontra na leitura e na conversa sobre os textos. Este é um desafio para nossa Escola para que o saber que nela se produz tenha efeito de formação.
O texto de J-A Miller indicado pela diretoria de cartéis nos convida a pensar sobre a escolha do mais-um pelos cartelizantes e as diversas formas como ele poderá responder por esse lugar. O tipo de trabalho que será feito e seus efeitos vão depender daquilo que vai ocupar o lugar de agente da provocação e de como o mais-um vai se situar em relação a isso. O que podemos extrair do texto de Miller e de nossa prática como mais-um é que o convite ao mais-um pode ser feito na lógica dos vários discursos, do mestre, do universitário, do analista e da histérica, e o trabalho permanente do mais-um será o de produzir torções no lugar em que é colocado para que uma elaboração e produção de saber possa acontecer. Pensar desta forma evita a idealização do cartel, de um modelo de cartel.
Quando o provocador é colocado no lugar de mestre do saber produzirá impotência. Nada mais a dizer, tudo já foi dito ou pode ser dito por aquele que sabe. Esta é a armadilha em que caem vários cartéis quando buscam o mais-um nesse lugar da mestria e ele não consegue fazer uma torção para mudar de posição. Essa mudança só é possível se, como provocador, ele está também provocado, como vocês bem dizem no cartaz da atividade. Provocado pelas questões que trazem os cartelizantes e que surgem dos textos estudados. Uma torção é necessária para tirar da inércia, da preguiça de pensar, que leva muitas vezes a apenas repetir o que foi lido e escutado. Tirar da inércia é de alguma maneira convocar a pensar. Sair da preguiça para “revelar e criar o que está latente no texto” [2] na leitura que cada um faz dele. Gostei do que diz Miller sobre revelar e criar o que está latente, ou seja, o que o texto não diz de forma explícita, mas que posso ousar pensar e criar a partir dai. Uma leitura que pode ousar localizar no texto os paradoxos, as contradições, os furos que funcionaram como mola das elaborações do autor e continuam a funcionar assim para o leitor. O cartel permite e incentiva essa posição de leitura. No cartel se pode colocar na conversa o que se pensou e contar com o que isso provocou nos colegas, o que puderam pensar a partir do que escutaram sem que isso vire uma associação livre, o que pode acontecer se o mais-um se confunde com o lugar do analista. Aí também se requer uma torção na posição do mais-um para não ser seduzido por uma posição de interpretação. A torção vai lhe permitir extrair os significantes mestres em jogo para fazê-los trabalhar, e não para interpretar a partir deles.
Ser solicitado como mestre ou como analista leva a impasses que bloqueiam a elaboração. A torção nessas posições se dará pela passagem pelo discurso da histérica, que tem como agente o sujeito. Bem sabemos que a histérica provoca o mestre, provoca os significantes mestres para fazê-los trabalhar. Isso convém ao trabalho de cartel. Mas não podemos esquecer que esse trabalho deixa um resto, o objeto a, um gozo desconhecido do sujeito quando ele está na posição de agente. Quando o cartel funciona no discurso da histérica, o mais-um na posição de sujeito dividido, de analisante, não está dispensado de também fazer uma torção para que o resto escondido, funcionando como agalma, possa vir a ter a função provocadora de causa de desejo e não de sustentação da insatisfação.
A aposta é de que o cartel não se instale em um discurso, cristalizando um tipo de posição provocadora do mais-um, mas possa contar com o mais-um para operar as torções necessárias nos discursos e abrir a uma elaboração em andamento que possa levar a uma produção de saber.
Aqui está presente a dimensão solitária e coletiva no cartel que gostaria de interrogar também para extrair a função política do cartel, no qual se faz a experiência sempre renovada da passagem da lógica do grupo, que alimenta a segregação a uma outra lógica que leva a uma forma de laço que considera a marca própria de cada um a partir da qual ele contribui com a elaboração e produção de saber.
Notas:
Para desenvolver seu propósito sobre a função epistêmica do cartel a partir dos discursos, Miller renomeia os 4 lugares em jogo: provocação, elaboração no andar de cima e produção, evocação no andar de baixo.
1-Miller situa no discurso do mestre o matema da elaboração provocada. No andar de cima (S1__S2), um chamado ao trabalho. Um chamado ao trabalho que leva em conta o traço particular de cada um, como os significantes mestres que se extraem dos textos estudados. Mas não sem considerar o andar de baixo, onde se situam o sujeito e o resto. No discurso do mestre o mais-um como provocador se situa não como saber, o que bloquearia a elaboração, mas como aquele que extrai os significantes que fazem questão para cada um.
2- No discurso universitário, o lugar do provocador, ao ser ocupado pelo saber revoga, adia a elaboração e em seu lugar faz surgir provocadores. O efeito é a angústia, a paralização e não uma elaboração de saber genuíno que implique cada um na sua elaboração. Quando a provocação se desloca do saber para o sujeito dividido, como vemos no discurso da histérica, o trabalho se move, mas pode se cristalizar na insatisfação. O discurso analítico fará surgir nesse lugar um provocador provocado, que terá uma função de causa de desejo. Como bem diz o texto de J-A Miller “O discurso analítico desloca esse sujeito, fazendo dele um provocador provocado”. Uma maneira bem particular de causar o desejo que convém ao cartel. Pode-se então circular pelos discursos, o que parece inevitável, mas sem se cristalizar neles.
O mais-um é trabalhador de tipo bem particular, que não se deixa esgotar pela exigência superegoica. Ele trabalha e faz trabalhar não no registro do supereu, mas da causa do desejo, onde cada um só pode entrar a partir de seus significantes mestres, e não como sábios ou Sujeitos Supostos Saber.
Chegamos aqui no ponto em que podemos interrogar o que seria uma elaboração coletiva. Experimentamos isso no cartel quando temos a feliz descoberta de um achado fruto de uma elaboração que implica mais de um: aquele que disse, aquele que fez dizer e aquele que se apercebeu que era importante? E com isso continuar a preservar uma diferença entre uma elaboração coletiva e uma produção que trará sempre a marca própria de cada um.
No final de seu texto Miller coloca um tom de ironia em relação à elaboração coletiva, ao se referir ao trabalho do enxame de abelhas e às equipes de escoteiros. Ironia bem-vinda para não cairmos no equívoco de pensarmos que um cartel produz slogans coletivizantes, pois o trabalho que aí se faz traz uma dimensão nova ao próprio funcionamento de uma equipe. Para não fazer essa confusão, será preciso levar em conta o que funciona no cartel como transferência de trabalho, que traz algo novo ao “enxame de abelhas” trabalhadoras no Campo Freudiano.
Há algo novo na experiência de cartel como pequeno grupo sem chefe, sem a identificação vertical ao líder, como localizado por Freud em psicologia coletiva e análise do eu”. O grande desafio do cartel é de pensar como a quebra da identificação vertical, que leva à horizontalidade, poderá dar lugar à diferença entre os participantes do grupo, para que a horizontalidade não vire homogeneidade.
[1] J-A Miller: “A análise é uma elaboração provocada pelo significante da transfer6encia”.
[2] Miller, J-A : Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”.
Comentário ao texto de Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros: “O mais-um e a elaboração provocada no cartel”
Por Adriana Rodrigues
Me chamou muita atenção a forma como Maria do Rosário foi compondo seu texto, pois mesmo depois de já ter trabalhado esse artigo do Miller[1] algumas outras vezes, eu ainda não tinha alcançado a sensação de movimento e de circulação da função do mais-um de um modo tão claro como Rosário nos transmitiu essa noite.
Miller coloca num tom até divertido o fato de que se uma elaboração precisa ser provocada é porque ela não se dá de forma espontânea. O que existe de espontâneo é a vocação à preguiça. A vocação ao trabalho é preciso ser provocada. E aí se arma toda a questão: como provocar uma elaboração que passe por um coletivo, mas que se faça a partir do que há de mais singular no que inquieta cada um, e que o ocorra o mais distante possível do imperativo superegoico? Ou seja, não são poucas as variáveis para equilibrar na equação que comporta essa função.
Lembrei que Freud afirma em vários momentos, em outras palavras, sobre essa necessidade de que uma elaboração seja provocada. E aprofunda essa ideia especialmente lá no Mal-estar na cultura, quando evoca Eros e Ananke, o amor e a necessidade, num enlaçamento provocado como condição para fundar a civilização. Mas, no nosso campo, para que isso funcione é preciso fazer emergir o que é causa de desejo em cada um para produzir um enlaçamento na via da transferência de trabalho.
E aí vem a fineza do que a Maria do Rosário foi construindo e nos esclarecendo. Partindo da pergunta sobre o lugar do qual, na função de mais-um, se pode provocar uma elaboração, e por onde pode funcionar para que se produza o efeito de formação, nossa convidada vai tecendo sua escrita de modo a desenhar a circularidade presente nessa delicada função. O convite para ocupar a função de mais-um pode vir tanto na lógica do discurso do mestre, do universitário, do analista ou da histérica. Rosário destaca que se trata, portanto, de um trabalho permanente de produzir torções no lugar em que é colocado, para que uma elaboração de saber possa acontecer.
O mais-um circula entre os discursos, inclusive nos menos convenientes ao funcionamento do cartel – o do mestre e do universitário – mas, na condição de analisante, de sujeito dividido, pode estar advertido desses convites e das torções e deslocamentos necessários, para, sobretudo, poder se sentir provocado em sua causa com a psicanálise e provocar desejo dando lugar para o que é de singular em cada cartelizante. Ou seja, é implicado no tripé freudiano da sua própria formação – o que Rosário traz como a articulação entre o viés epistêmico, clinico e político – que o mais-um pode cumprir sua função de provocar para que uma elaboração com efeito de formação possa acontecer.
Para finalizar, essa circularidade presente na função do mais-um pela via dos discursos, me lembrou o que o Oscar destacou no programa de trabalho desta gestão da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio, que é uma outra forma de circulação: a da própria função do mais-um entre os membros do cartel. Enfim, paro por aqui, agradecendo muito a Rosário por ter sido tão generosa em seu texto e nos possibilitado esse debate.