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O interpretador é o analisando

Liège Goulart (EBP/AMP)
: Kandinsky, “Yellow, red, blue“ (1925)

O mundo de cada ser falante só existe na medida em que funciona uma determinada ordem que constitui o mundo, ou seja, o mundo obedece às ordens do mestre.

Para que uma análise aconteça, é necessário instaurar a máquina do sentido: recolher, dos ditos, os tropeços, os lapsos, os significantes privilegiados que fazem laço para esse sujeito, sujeito ao fantasma; recolher as mensagens cifradas e acolher o deciframento interpretativo que o próprio sujeito do inconsciente já realiza.

Então, qual a função do analista que segue seu analisando interpretador? Pensemos nos efeitos que ressoam no corpo, no programa de gozo de cada um: de que ordem são? Podemos localizar aqui um primeiro desarranjo nos sentidos que estavam operando previamente? Como operar com eles e de diferentes modos? Um extrato de um percurso clínico em seus inícios: um analisante vinha discorrendo em torno do que girava a novela familiar. De repente, interrompe sua fala e diz que lembrou da música de Caetano Veloso que diz “alguma coisa está fora da ordem”, ao que a analista imediatamente pergunta: “Qual é a ordem?”. Isso muda o caminho da fala analisante. A analista não intervém perguntando o que é que estava fora da ordem (o que levaria a discorrer mais e mais sobre o já sabido); a analista aponta para um outro caminho para a fala que pode, então, incluir uma leitura/escrita de um ponto fantasmático, não sabido até então, ao menos o quanto isso tocava, ferozmente, seu corpo e sua vida. O real é sem lei, está fora de qualquer ordem, mas é necessário algo do que aparece como imperativo, como ordem.

Interromper a cadeia de sentidos desperta: não sempre como revelação de saber, mas ali onde o sentido era adormecedor. Para Lacan, é preciso aí um forçamento para pescar e destacar o lugar de onde isso goza. Ele diz que o dizer que daí se decanta não é um dito. É, antes, ler/escrever, é leitura do que se escreve no corpo; é leitura que pode equivocar uma escrita de gozo. Lacan diz que não joga com os equívocos, mas sim os desmistifica[1].

O corpo depende do discurso, e a estrutura do inconsciente como discurso do Outro bebe dessa fonte. No entanto, o discurso analítico é o que pode tocá-lo, na medida em que não é ortopedia, mas parte da equivocação inerente à estrutura do inconsciente como real. O equívoco possibilita o surgimento do mal-entendido. Não se trata da substituição de sentidos, mas da noção mesma de que o mal-entendido é de estrutura no inconsciente como real. Lacan menciona que o sujeito é hiante, aludindo à hiância que o objeto a imprime entre um significante e outro, sendo o sujeito localizado ali, nessa hiância, sendo essa fenda mesma[2].

Como opera o discurso analítico para tocar o corpo aprisionado e extrair um outro corpo?

Como orientar-nos na clínica, visando a hiância da boa maneira?

Não tem fim ao que uma interpretação pode chegar. E o que deve vir no lugar da interpretação sem fim?

O analista, por ter como suporte o saber no lugar da verdade, pode interrogar-se como tal sobre o que é a estrutura do saber. É a partir daí que interpreta: S(Ⱥ).

“O que nasce de uma análise, nasce no nível do sujeito, do sujeito que fala, por meio da merda que o objeto a lhe propõe na figura de seu analista.”[3] Seria um sujeito hiante, no coração do “a”, nessa hiância entre S1 e S2? O que se modifica aí ao longo de uma análise?

O real faz do corpo uma caixa de ressonância, de vibração em acorde com lalíngua, esse furo atrativo de libido que conjuga som e sentido.

Um significante que ressoa, durante o percurso, não fica reduzido à metáfora (que pode ser infinita, que pode deslizar infinitamente na metonímia), mas comporta o furo da linguagem, sulco no real, pois o real não pode ser anulado. Uma metáfora, por si só, pode não incluir o que é aqui crucial: unir som e sentido para ser capaz de fazer função de outra coisa.

Lacan orienta a ousadia e a coragem de “um truque” conveniente, esse que poderia cortar o ponto em que a reta infinita se fecha, no infinito. Há verdade no gozo de lalíngua, mas tem a dimensão de uma verdade não-toda, é verdade variável, é varidade.

A interpretação, então, visa ao gozo que, sim, há e não pode ser absorvido pela máquina do sentido, mas visa, também, ao gozo do “não há”.

S1 é um acontecimento de gozo no corpo produzido no ponto traumático do encontro do corpo com lalíngua. Importa aqui “meter a mão” no gozo de lalíngua. Seria isso o forçamento do qual fala Lacan? É da ordem de uma inflexão?

Não se trata de ir contra o gozo ou tentar domesticá-lo. Lacan diz (em subversão do sujeito e dialética do desejo) que o gozo é “aquilo cuja falta faria vão o universo”. Trata-se, então, de captar o relevo do gozo, o programa de gozo e destacá-lo, dando corpo, também, no lugar mesmo do analista, a isso que se situa como sem-sentido, como um perturbador pedaço do real.

O forçamento é o equivocar, a partir do corpo, como eco de um dizer: uma modulação que equivoca um significante que toca lalíngua do corpo.

O entusiasmo, as sutilezas, os recursos para encarnar a “abjeção” do gozo do Um, são instrumentos éticos que podem propiciar uma torção. Essa topologia deve ser mantida durante todo o percurso analítico (e não somente ao final, quando o inferno de um gozo alcança uma torção no ponto da causa do desejo e da causa do dizer), pois o ponto central de uma análise é o trabalho em torno disso que não é domesticável.

Incidindo em lalíngua, como suporte corporal e fazendo-se caixa de ressonância, o analista pode tocar o núcleo do que concerne o percurso analisante. Enquanto o trauma golpeia, paralisa, emudece e produz sideração, o que pode surgir de novo aí? Qual o estatuto do S1 que mortifica, nesse caminho do interpretador que é o analisando? Como pode essa mortificação ser perfurada topologicamente?

Do corpo ressonante de lalíngua que somos, apenas o apreendemos ao sermos atravessados pelo Outro que é também filho do discurso, ou seja, barrado. Somos falados, fecundados pelo discurso que passa a compor o suporte que é o corpo, como potência de contração e hiância entre sentido e gozo, entre enunciado e enunciação, entre o dito e o dizer, entre a fala e a vociferação. Como a vociferação (enunciado e enunciação em ato) pode emergir como possível? Como a transferência permite suportar esse esburacamento e esse trabalho com ambos os gozos (o Há Um do gozo e o gozo do “não há relação sexual”)?


[1] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 133.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. p. 222.
[3] Ibidem, p. 227.
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