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O interpretador é o analisando?

Gustavo Ramos (EBP/AMP)
Franz W. Seiwert, “Stark Abstrahierte Halbfigur” (1920)

À primeira vista, o título deste eixo me causou um certo estranhamento. Como assim o interpretador é o analisando? Se formos partir desse ponto, qual seria, então, a função do analista? Qual a função do analista diante de um equívoco do analisando? É por essa via que minha questão de cartel se delineou.

Não é todo o equívoco que vai servir de material para a interpretação e é por esse motivo que Lacan vai desmistificá-lo ao dizer que é ele, o equívoco, quem faz explodir as ficções. Estas estão contaminadas pelos traços do Outro, “transformando-os em marcas subjetivas que se tornam restos de gozo desconhecidos”[1]; são elas que “nos falam”[2], como apregoa Lacan ao dizer que não falamos o que realmente queremos, mas o que os outros quiseram de nós. Essas marcas instauram a ficção fantasmática de cada um e é com elas que vamos ter um enquadre do real. Por se tratar de um enquadre, a ficção não tem como cernir todo o sujeito, há um ponto que sempre ficará de fora, um ponto opaco.

É nesse ponto que o argumento da nossa jornada diz se localizar o dizer, a causa do dizer, o caroço do corpo que sempre escapa do real. A ficção, nesse sentido, é impotente para resolver a opacidade do real, e ela é substituída, agora sim, pela fixão: “um vazio de nomes, de endereçamento, de laço, um buraco no discurso”[3], ou ainda como nos diz Lacan em O Aturdito: “[…] ao mostrar a saída das ficções da Mundanidade, produzir uma outra fixão [fixion] do real, ou seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem.”[4]

 Sob essa toada, podemos retomar o equívoco como o elemento que pode apontar para esse real opaco e assim nos dar uma pista do que está de fora do enquadre fornecido pelo Outro. Lembro de um analisante que caiu diante do consultório do analista, estatelou no chão e foi hospitalizado com ferimentos. Dias depois, ao retornar ao consultório começou a dar sentido à queda e a relacioná-la com sua análise. O analista interrompe a proliferação de sentido ao dizer: “foi um acidente”, colocando tal analisante em uma outra posição, não a de querer dar sentido a todo e qualquer equívoco e a toda e qualquer queda. Um tombo muitas vezes é só um tombo e o ato do analista foi o de tirar tal analisante da ficção fantasmática do sentido para colocá-lo em uma outra posição. Para isso, a presença do analista foi essencial.


[1] BROUSSE, Marie-Hélène. Traços e marcas. In: Curinga. Belo Horizonte: EBP Seção Minas, n. 52, 2021. p. 30.
[2] LACAN, Jacques. Joyce, o sinthoma. In: O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 158-159.
[3] Ibid., p. 30.
[4] LACAN, Jacques. O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 480.
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