#04 - SETEMBRO 2024
O enigma e a enunciação
Eneida M. Santos (EBP/AMP) – Cartel Fulgurante
EIXO 3: O DISCURSO FAZ DO CORPO UM CORPO
Partirei de um trecho do texto do argumento de Cínthia no qual ela destaca a expressão “um dizer novo”, como uma interpretação que faz emenda entre o simbólico e o real, para situar a questão do enigma e da enunciação. Uma vez que o ato da enunciação reinaugura esse “novo”, o sujeito do enunciado se vê transformado e o enigma que o ato contém, daquilo que o causa, pode ser, de certa forma, preservado.
O discurso faz do corpo um corpo, título dado a esse eixo, marca esse encontro traumático com “a palavra que fere”[1], o choque do encontro da língua com o corpo. Já a enunciação refere-se a um processo mais articulado e sofisticado da linguagem, mais tardio, vamos dizer assim, com relação a esse choque que o significante produz no corpo. Assim, podemos afirmar que a enunciação percorre o caminho inverso desse choque primeiro? Seria a enunciação o retorno da palavra, quando esse enunciado consegue resgatar o vivo do trauma do choque da linguagem no corpo, fazendo ouvir uma outra voz no texto, diferente da que se expressou no enunciado?
O que é uma enunciação? Não é uma modulação da linguagem, nem o brilhantismo e erudição de um enunciado, nem uma simples inflexão da fala. Não é um ato performático. Não é também dizer a verdade, porque com Lacan podemos afirmar que dizer a verdade é intencional e elimina por isso a enunciação em proveito do enunciado.
Com Lacan, podemos também afirmar que existe essa discordância fundamental entre o enunciado e a enunciação. Ao contrário da afirmação de Beneviste e Jackobson, para quem a enunciação é um ato que está em continuidade com o enunciado, para Lacan pode haver enunciação sem enunciado e enunciado sem enunciação.
Lacan, ao longo de seu percurso, vai se tornando joyceano. Com Joyce, ele constata que alguma coisa que aparece no significante, por meio do dizer, pode produzir um eco no corpo daquele que fala e que esse significante se presta aos avatares dos equívocos e homofonias. Com Joyce, pode afirmar que a enunciação é uma cadeia significante que parasitou a cadeia significante do enunciado e que, mais ainda, toda a dimensão da linguagem se torna parasitária para o sujeito. As palavras lhe são impostas! Joyce, escritor por excelência do enigma teria feito do enigma uma função reparadora de seu eu[2].
Em Ulisses, na fantástica tradução para o português de Caetano Galindo[3], Stephen, o professor Stephen, propõe a seus alunos como enigma (um enigma muito conhecido para o leitor de Joyce) uma charada, uma enunciação não um enunciado[4]
“O galo cantou,
O céu azulou,
E os sinos de bronze
Bateram as onze.
É hora do incréu
Seguir para o céu.”[5]
Com a garganta coçando, diz Joyce, Stephen dá para o enigma a seguinte resposta: “A raposa enterrando a avó embaixo de um azevinho”[6]
É uma resposta completamente besta, diz Lacan, é o mesmo que nada. Aqui a enunciação remete o pouco de sentido a outro pouco de sentido. Ela não encontra o enunciado, só encontra o nó da não relação sexual e é por isso que dizemos que Lacan é joyceano, porque seu estilo, tal como em Joyce, é enigmático.
Para terminar, acho importante destacar a diferença que podemos traçar entre o enigma e o mistério. Se o significante marca o corpo, fazendo surgir um falasser, isso é um mistério, o mistério do falasser (como lembrou Juan em nosso cartel). A experiência dos efeitos de enunciação que surgem em uma análise, por meio das palavras “chistosas”, mostra que o enigma pode ser uma transformação desse mistério do falasser em significantes cifrados pelo equívoco, verdadeiros chistes. Não será com isso que nos deparamos ao lermos admirados o título intraduzível do seminário 24 de Lacan: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre ?