#04 - SETEMBRO 2024
O corpo na interpretação
Paula Nocquet
O título do eixo O interpretador é o analisante tão logo me remete ao inconsciente intérprete que propõe J-A Miller[1]. O inconsciente é o nosso primeiro intérprete e se oferece à interpretação, como vemos nos sonhos. É o inconsciente que bem conhecemos, um grande trabalhador de ciframentos do qual Freud nos deu tantas provas. Ainda que em partes uma análise possa consistir em uma interpretação com efeito de sentido, aportando S2, é preciso em algum momento que, ao invés de favorecer a produção de sentido, isso se esvazie, isolando os S1. Assim, temos a primeira e segunda clínica que não se excluem, mas, se referem a formas diferentes para pensar o inconsciente e, talvez, formas diferentes de pensar o corpo.
Todos temos palavras que aprisionam o corpo de alguma maneira, como uma marca ou um trauma que se impôs em algum momento sem razão de ser. A interpretação, do lado do analista, caberia ser uma espécie de míssil[2] de linguagem para essas palavras que aprisionavam. De todo modo, os efeitos são apenas verificados em um efeito retroativo. Mas, como nos orientamos para essa interpretação? Para isso, interessa-me recortar uma pergunta que Liège nos faz em seu texto, como o discurso analítico permitiria liberar o corpo aprisionado pelo discurso e então produzir um outro corpo? Existiria um corpo que não esteja aprisionado pelo discurso? De que outro corpo se trata?
Precisamos do corpo para falar, no consultório se traz o corpo e se fala dele, do próprio e do corpo do Outro. Na clínica das neuroses, enquanto as histéricas padecem do corpo, os obsessivos trabalham para mortificá-lo. A experiência analítica coloca de manifesto que o corpo não responde ali onde esperávamos, seja na sexualidade, no riso ou no espelho. Ou seja, temos um corpo do qual se goza, que nunca parece nos pertencer totalmente, pois experimentamos um certo estranhamento. Voltando ao fio da tensão entre a primeira e segunda clínica, se tomarmos o imaginário do ultimíssimo ensino, um imaginário não mais reduzido à sua imagem especular, mas a partir do enodamento de R.S.I., e que “passa a ter como marco essencial sua equivalência com o corpo”[3], me pergunto se podemos nos orientar em nossa clínica atual, pelas soluções que o sujeito inventa para habitar seu corpo, quando o simbólico é insuficiente para regular o gozo, fazendo da interpretação uma caixa de ressonância desse gozo?