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Nota sobre as próximas estações

Ana Sofia Guerra[1]

Portanto, não é que eu me desvie do drama social que domina nossa época. É que o funcionamento de minha marionete evidenciará melhor para cada um o risco que o tenta, toda vez que se trata da liberdade.
Pois o risco da loucura se mede pela própria atração das identificações em que o homem engaja, simultaneamente, sua verdade e seu ser. Assim, longe da loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser a liberdade “um insulto”, ela é sua mais fiel companheira, e acompanha seu movimento como uma sombra.
E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade.  (Lacan, Jacques. Formulações sobre a causalidade psíquica (1946). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. p. 177, 1998).

À luz de um entendimento quanto ao drama social que domina nossa época, Miller sugere que a atual reivindicação de igualdade universal dos seres falantes poderá nos conduzir ao desaparecimento programado da clínica. Como amostra, temos visto que, frente às incessantes buscas por uma identidade que seja própria, desconhece-se “que sou no outro” (Harari, 2023). Esse desconhecimento é marca de um delírio que não diz respeito apenas à loucura dita psicótica, mas a todos:

O psicótico é um sujeito que verifica em seu sofrimento o estatuto de ser falado, estatuto que o neurótico esquece ao identificar-se com o sujeito que fala; O neurótico pensa que ele é quem fala, esquece que é falado, enquanto o psicótico o diz abertamente, sofre por ser falado pelo Outro. (Miller, Discurso de abertura do Serviço de Jacques Lacan, 1983)

Desconhecer que se é falado é desconhecer que não somos livres como pensamos.  Desde Freud, a associação livre faz emergir os limites de nossa liberdade, onde o que se revela é o sem sentido da falha aberta, própria do inconsciente, fissura fundamental onde algo escapa, já que não há significante capaz de nomear o que excede de todo gozo fálico: “na loucura seja qual for sua natureza, convém reconhecermos de um lado, a liberdade negativa de uma palavra que renunciou a se fazer reconhecer” (Lacan, 1998, p.281).

Em nossos tempos, pensar a loucura à luz do último ensino é diferenciá-la da psicose. Em um passado recente, nos pautamos pelo questionamento quanto ao excesso de patologias, que inclusive ia ao encontro do movimento pela despatologização. Hoje, somado a esse excesso presente entre os “dsmistas”, como nomeia Iordan Gurgel, acrescenta-se ainda um perigoso apagamento das definições clássicas. A cada volume do DSM, incluem-se critérios que permitem apresentar indicações sobre qualquer indivíduo que ali as busque, enquanto que definições que servem de baliza à nossa clínica, como a histeria, são eliminadas. Disso é preciso apontar que o aforisma lacaniano “todo mundo é louco”, não significa uma aposta à política dsmista, como se todos estivéssemos lá, e onde aí talvez caberia o dito de que “todo mundo é normal”, que sugere Miller. O problema se encontra no fato de que, nesse feroz movimento, onde a cada atualização o DSM caminha rumo à universalização identificatória há, ao mesmo tempo, um achatamento da clínica, e talvez aí a diferenciação entre loucura e psicose se perca.

Conforme comenta Leonardo Scofield no argumento para a nossa Jornada, o empuxo à produção de sentido com seus efeitos de dominação segue a todo vapor em nossos tempos. Temos visto que a própria clínica psiquiátrica, cada vez mais absorvida pelas generalização dos diagnósticos, nivelados a partir dos psicofármacos, mostra os indícios dessa crise. Visando sua humanização, uma corrente da psiquiatria tem buscado uma solução por meio de um retorno a Jaspers que, a partir de um dualismo metodológico que busca abarcar as ciências (Naturwissenschaften) e as humanidades, situa a perspectiva psíquica no campo da compreensão, cujo limite seria “as fronteiras do sentido” (Aguiar, 2020, p.31).

A aposta pela compreensão, como tem pretendido a psiquiatria, pode proporcionar efeitos humanizantes, mas não salvará a clínica de seu desaparecimento. Para Jaspers, a perspectiva da causalidade no campo psíquico, com o que escapa à compreensão, seria uma “blasfêmia”, como aponta François Leguil (1991). O título de 1946, portanto, “Formulações sobre causalidade psíquica”, traz em si uma divergência inegociável à proposta política da psiquiatria como solução aos atuais impasses da clínica. Quanto aos desafios para a psicanálise, temos visto que muitos trazem/levam consigo um diagnóstico no bolso, ao mesmo tempo em que o processo despatologizante abre lugar “aos estilos de vida livremente escolhidos” (Miller, 22, p.9), afiançados por princípios jurídicos. Sobre as identidades, o delírio de que é possível “ser ‘eu mesmo’ sem o outro” pode ver a travessia do narcisismo de uma análise como uma ameaça, conforme indica Angelina Harari (2023). Se a psicanálise se faz com psicanalistas, é preciso que a clínica psicanalítica siga viva. Miller nos incita a “diversificar” (2015, p.307) como um dos “caminhos para o futuro”. Como fazê-lo sem descarrilharmos?

Miller aponta que “cabe a nós alinhar nossa prática a essa nova era, sem nostalgia, sem amargura, sem espírito de vingança”. Aqui, recordamos do uso que Lacan faz da expressão de Joyce, work in progress, para pensar seu ensino. Um trabalho em que “as conclusões, por tão firmadas que sejam, são sempre transitórias” (Miller, 2015, p.332). Ler seu ensino sem cegueira, sem tentativas de adaptação. Como alinhar nossa prática sem nos submetermos a essa nova era em que “os tempos correm” (Miller, 2015), e tampouco nos retermos a definições irrevogáveis? De que forma podemos sustentar esses acentos singulares na construção de nosso campo, tendo a liberdade como referência, sem cair no engodo desse significante como mais um imperativo em nossos tempos?

O motor de nossa clínica é o grão de loucura de cada um, como cada um se vira com o que irrompe do real, sejam neuróticos ou psicóticos. É esse nosso leitmotiv. Nossa louco-motiva. É justamente isso que foge aos limites da compreensão em seu ponto de liberdade, na medida em que recusa toda estrutura de dominação e que não se deixa domesticar. Entretanto, é preciso lembrar que um final de análise nada tem a ver com uma liberdade irrestrita. Trata-se, antes de “inventar algo e enlaçar-se ao Outro com seu próprio invento. Não é desenlaçado do Outro.” (Naparstek, 2017, p.7)

Lacan, em Breve Discurso aos Psiquiatras, indica a dimensão da loucura como o ponto de incômodo dos psiquiatras, e que a falta desse incômodo seria uma tentativa de proteção que geraria barreiras entre eles e o louco. Ele diz: “vocês têm diante dele (o louco) um sentimento muito particular que é o que deveria, em nós, constituir o progresso – progresso capital – que poderia resultar no fato de que algum psicanalisado se ocupe um dia verdadeiramente do louco” (Lacan, 1967, p.25). Nesse trilhar, a loucura como limite da liberdade pode também ser lida a partir da recusa ao estranho e insuportável. Há um anúncio, advertido, para as próximas estações. Não recuar, de modo a se ocupar verdadeiramente do louco.


Referências
Aguiar, Adriano. Da psicopatologia de Jaspers à biologia lacaniana. In: Teixeira, Antonio; Rosa, Márcia. Psicopatologia Lacaniana. Ed. Autêntica. Vol. 2. pp.23-45. 2020.
Harari, Angelina. O delírio de identidade nos inícios das análises. 2023, de https://enapol.com/xi/pt/portfolio-items/o-delirio-de-identidade-nos-inicios-das-analises/?portfolioCats=149.
Lacan, Jacques. (1946). Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. pp. 152-197. 1998.
Lacan, Jacques. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. pp.232-325. 1998.
Lacan, Jacques. (1967). Breve Discurso aos Psiquiatras. Não publicado.
Leguil, François. Lacan com e contra Jaspers. Capítulos de Psicanálise. N. 15. Biblioteca Freudiana Brasileira. 1991.
Miller, Jacques-Alain. Todo mundo é louco – AMP 2024. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia, n. 85, dez. pp. 8-19. 2022.
Miller, Jacques-Alain. Todo el Mundo es Loco. Buenos Aires: Paidós. 2015.
Naparstek, Fabian. La Libertad del Loco. 5a Jornada de Psicopatología. Universidad de Buenos Aires. 2017. Não publicado.

[1] Integrante da comissão “Não procuro, eu acho”.
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