#01 - MAIO 2024
No princípio era o gozo: a contingência, o real, a transferência… uma primeira passagem
Adriana Rodrigues (EBP/AMP)
De maneira geral, a busca por uma análise acontece quando um encontro contingente irrompe e perturba a homeostase de um arranjo sintomático que, até então, vigorava de forma minimamente exitosa. Podemos dizer que a movimentação entre o gozo, a contingência, o real e a transferência, operam como os desencadeadores do início de uma análise. O mal-estar que se produz aparece na narrativa e nas primeiras queixas do analisante. Miller, no texto Como começam as análises, afirma que, “para ir ao analista, é preciso já ter interpretado o próprio sintoma, dando a ele um significado inconsciente, ou seja, “não sei ler isso sozinho””.
Se o analisante chega com a constatação de que não sabe ler seu texto inconsciente sozinho e precisa do analista, quais as coordenadas que podem orientar a escuta, ou a leitura, dos indícios do real e do gozo nas entrelinhas da teia significante que vai se armando nos primeiros encontros com um praticante da psicanálise? É a pergunta que nos faz Célia Winter, no texto do argumento do eixo II, O gozo desde o início da análise, da nossa 6ª Jornada. É um convite a pensar de que maneira podemos cernir algo do gozo já nas primeiras entrevistas, de modo a diferenciar a escuta analítica de qualquer outra, abrindo caminhos para o início de uma análise.
Sérgio de Mattos, no texto A boa sorte de analisar-se, destaca que o praticante da psicanálise precisa estar atento ao que na fala do analisante emerge trazendo uma dimensão libidinal, ou seja:
[…] uma palavra carregada de afeto, uma cena enigmática, uma conexão nova que causa satisfação, uma articulação onde se mostre um padrão repetitivo. Índices que podem emergir das primeiras lembranças infantis, de narrativas de traumas, de momentos de ruptura na vida quando tudo toma um outro caminho, de sonhos que não se esquecem, de outros frequentemente repetidos[1].
No manejo transferencial desse conteúdo, como afirma Célia, o praticante da psicanálise precisa estar numa posição de subversão no enquadre do enredo que tenta se repetir na transferência, considerando-a como “uma modalidade lógica que se opõe à repetição”[2], para que um amor inédito seja possível. Nas entrevistas preliminares, é num instante – mesmo que evanescente, que alguma coisa irrompe na via de um “para além do sentido”, trazendo um elemento novo, enigmático, que faz vacilar, ou até cair, algo do gozo fixado como estatuto de verdade para o sujeito, demarcando a conclusão de um primeiro tempo, uma passagem. Ou nas palavras de Célia: “A entrada em análise, ponto crucial na práxis lacaniana, marca uma transformação significativa, um limiar que distingue um antes e um depois, na experiência do sujeito”[3]. Trata-se, penso eu, de uma passagem que traduz um rearranjo nos elementos que já estavam ali desde os primeiros encontros com o praticante da psicanálise: o gozo, a contingência, o real, a transferência – mesmo que ainda em suas primeiras nuances.
Partindo destas ideias preliminares, me interessa saber mais sobre os tempos numa análise. Quando pensamos em “finais de análise” e sobretudo, no dispositivo do “passe”, fica evidente um momento de passagem e de novos arranjos com o gozo. Mas, considerando que uma análise se faz na perspectiva da operação de redução do sentido, processo em que, do texto do inconsciente se destaca um significante que marca uma redistribuição de gozo e um “antes e um depois” naquele recorte de tempo[4], seria possível pensar em momentos de “passagem” ao longo de um processo de análise? Nesta hipótese, quais os elementos poderiam dar indícios dessa passagem?
Outra questão que não foi possível desenvolver aqui, mas que me convoca muito, é o convite que Célia faz para pensar como esse processo se dá nas instituições. Encontros com a psicanálise que muitas vezes acontecem nas condições mais inusitadas, mas que podem marcar um “antes e um depois” e abrir portas para que novas possibilidades se produzam a partir daí.
Ao fim, reconduzo a pergunta-convite que me foi feita: quais são as suas questões sobre o gozo no início de uma análise? A 6ª Jornada “Cadê o gozo: o que diz a época e a clínica”, abre espaço para ouvi-las.
[1] Mattos, Sérgio. A boa sorte de analisar-se. In: Revista Correio, n. 92. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, abr. 2024, p. 37.
[2] Ibidem, p. 39.
[3] Winter, Célia. Eixo II: O gozo desde o início da análise. 6ª Jornada da Seção Sul. “Cadê o gozo? O que diz a época e a clínica”. Disponível em: https://ebp.org.br/sul/eventos/jornadas/6a-jornada-da-ebp-secao-sul-cade-o-gozo-o-que-diz-a-epoca-e-a-clinica/6a-jornada-da-ebp-secao-sul-cade-o-gozo-o-que-diz-a-epoca-e-a-clinica-eixo-2-o-gozo-desde-o-inicio-da-analise/
[4] Miller, Jacques Alain. Como começam as análises. Disponível em: https://enapol.com/xi/portfolio-items/como-comienzan-los-analisis/. Acesso em set/2025.