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Mais-um, como Provocador provocado

Nohemí Brown

Agradeço a Oscar Reymundo e à equipe da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio o convite. E o prazer de estar com Rosário do Rêgo Barros, com quem, além de vários trabalhos, estamos em um cartel. Vou trazer algumas notas outras destacadas de um texto no qual me debrucei sobre a questão do Mais-um, a partir do convite que me foi feito.

O sintagma provocador provocado[1] é uma proposta de Jacques-Alain Miller. O interessante é que esse sintagma está em ressonância com outro termo: o de provocar a elaboração em referência justamente com a função do Mais-um. Então, a elaboração provocada está em articulação com provocador provocado. Podemos dizer que um faz ecoar o outro.

Com a ideia de elaboração provocada e de provocador provocado podemos situar o valor próprio do trabalho em cartel. Por isso, gostei do convite de Oscar para estar aqui, para pensar o Mais-um a partir desses elementos.

De certa forma, no centro de cada um está o ato da provocação. Algo precisa ser provocado. Isso nos remete a algo que não se dá de forma natural, mas, ao contrário: para que um dizer ou uma certa relação com o saber possa ser viável, é preciso que alguém saiba provocar. Há a tendência à preguiça, ao não querer saber disso. Por esse motivo, o trabalho sempre precisa ser suscitado. Para isso, é necessário o apelo de provocadores “para chamar o que é latente e que, no chamado, o revela e cria”. Daí que a elaboração precise ser “provocada” e o Mais-um tenha que saber fazer com isso, provocar, inventar, desde sua singularidade até um certo “despertar”. Quando se identifica ao lugar do saber, quando se tampona esse vazio candente, amortece-se o desejo e todos dormem.

Em certo momento, situei que esse termo provocar uma elaboração permite esclarecer o que se espera de um cartel, isto é, justamente uma elaboração provocada. Não é uma grande dissertação, é uma elaboração.

Elaboração é uma palavra que tem a mesma raiz que laboração, de preparação esmerada, imensa, segundo o Dicionário Aurélio. Mas também de “trabalho do espírito que conduz a uma ideia, a um conceito”. A ênfase não precisa estar no imenso, mas talvez na segunda conotação. Não quer dizer que o trabalho em um cartel não possa ser imenso, mas seu valor não radica nisso. Não é a lógica de que quanto mais se trabalhe, quanto mais se labore, mais se sabe. Por isso, o outro ponto parece bem mais interessante: um trabalho do espírito que conduz a uma ideia, um conceito. Pode ser intenso, imenso, pontual. Porém, não está na quantidade, mas naquilo que se extrai, que se pode dizer, que cada um pode saber. Um trabalho que não deixa de ter sua pitada de desejo.

Se pensamos elaboração como algo que não está na citação, na referência, mas que se desprende em uma enunciação singular, isto não se faz naturalmente. Implica certo esforço para situar o que se quer dizer em determinada frase ou proposta quando nos aproximamos dos textos de Freud, Lacan e outros. Mas para isso é necessário que se possa fazer disso que não se entende, que não parece tão claro, um traço que nos interrogue.

Nesse sentido, a elaboração implica certo forçamento a um dizer melhor e, neste ponto, pode produzir efeitos para aquele que a formula. Há algo de uma lucidez do laço, como Rodrigo Lyra situou o cartel, mas também podemos estender a uma luz quando, a partir disso que está opaco, incerto, confuso, se coloca a trabalho. Podemos dizer que um trabalho de cartel está feito por esses momentos que, de certa maneira, são provocados, inclusive apesar da intencionalidade do outro. Isto é interessante, pois a transferência de trabalho quando está em jogo se faz presente, por exemplo, quando se leva uma leitura ou uma elaboração e não produz reação nos participantes do cartel, ao contrário, um silêncio. Isso pode levar ao esforço por reformular. Afinal de contas, se levamos a sério Lacan, trata-se de poder sustentar uma elaboração ali no pequeno grupo e depois pode ter um outro destino, como seria a Jornada de Cartéis, por exemplo.

Mas provocar o quê? Poderíamos responder de início: localizar certo limite no saber. No texto “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”, Miller localiza os quatro discursos como modos de provocação. Mas, há que ver o que provocam! Podemos dizer, não se trata só de provocar, pois pode-se provocar várias coisas: inibição, impotência, se fazer de bobos etc.

Neste ponto, vale a pena situarmos: qual a diferença entre um provocador e um provocador provocado? Se seguimos a própria formulação de Miller, ele situa a posição no discurso universitário, em que a elaboração fica revogada ou adiada. O efeito disto seria o de produzir provocadores. Também fica o lugar da histérica como o sujeito provocador por excelência. Provoca o outro a produzir um saber. O que me parece esclarecedor é que a função do discurso analítico desloca o lugar de sujeito provocador a um provocador provocado. Posso dizer a um lugar de sujeito provocador que consente com sua divisão e se faz responsável do que está em jogo na provocação.

Nesse sentido, Miller extrai que a posição que mais convém é a da histeria, que implica um certo lugar de provocação, de provocar o outro a dizer, responder. Mas a torsão que Miller dá é que não fique nesse lugar de provocador, mas no lugar de provocador provocado, isto é, que não vise um outro que lhe responda, mas que tome para si a divisão. Que ele provoque de onde a questão lhe inquieta, não a compreende, o questiona.

Cabe destacar que Miller parece, em certo nível, propor o provocador provocado referido aos cartelizantes. O provocador-provocado seria a posição do cartelizante por excelência. E do lado do Mais-um coloca a função de provocar a elaboração. Contudo, sabemos que o laço do Mais-um no cartel é mais interessante que essa dicotomia, pois o Mais-um tem essa função, mas também é cartelizante. Inclusive, destaco uma colocação do próprio Miller: “é desejável que o Mais um não se esgote como Mais-um”, posso acrescentar que ele tome seu lugar de cartelizante. Então, não se trata de incitar, provocar de fora. Ele mesmo está dentro do cartel, ele não é um professor que ensina ou estimula, só consegue provocar algo da ordem do trabalho de elaboração, porque ele está em um laço com o cartel e, ao mesmo tempo, como um a mais que descompleta o grupo.

Não é um “perguntão”, um senhor que faz os outros trabalharem. É a arte de poder extrair um ponto de onde o que está sendo trabalhado, dito, lido, possa lhe interrogar e abra para um certo ponto de incômodo, mas que convoca ao trabalho de extrair uma elaboração. Algo que o coloca a trabalho e que pode talvez ressoar em alguém e abrir uma via do querer saber sobre isso.

Tem um termo de Miller de que gosto muito: fazer “buracos nas cabeças”, mas posso acrescentar: porque algo faz furo para ele também. Miller conclui: “Isto supõe que o Mais-Um se recuse a ser um senhor que faça o outro trabalhar, ser aquele que sabe ser analista no cartel; tudo isso para ser um agente provocador a partir de onde há ensino”. Nem senhor nem analista, mas um saber extrair uma provocação dali onde há ensino.

Nesse sentido, o Mais-um fica como um provocador provocado. Entendo isso como alguém que não só convoca a elaboração, mas também está fisgado pelo tema, pela questão, se sente convocado.

Embora seja certo que Lacan indica que não deve ser qualquer um, isto é, que tem certo efeito agalmático. Não é o lugar que o Mais-um deveria sustentar no cartel. Ele está também a trabalho, como Mais-um, mas principalmente como qualquer outro membro do cartel com relação a suas próprias perguntas, incitando o saber no cartel, mas em posição analisante, e falando a partir de Freud e Lacan. Dar então lugar ao objeto no cartel exige que o Mais-um não se aproprie do efeito de atração, mas que o refira a outro lugar – entre nós, a Freud, Lacan…

O Mais-um extrai o ponto de fuga, o ponto opaco que toma para si, e desde ali pode produzir um enxame e a possiblidade de um “mais-de-saber”. Um enxame onde se é abelha e não rainha, seguindo a metáfora de Miller.

Neste ponto retomo dois aspectos trazidos por Bernardino Horne no sábado, em uma mesa na Jornada de Cartéis na EBP-BA. Foram comentados os textos de Bernardino Horne, Iordan Gurgel e Marcelo Veras, incluídos no livro O cartel, novas leituras: um comentou o texto do outro e fez ressoar o que a cada um lhe tocou das elaborações do outro. Uma proposta interessante! Mas houve duas pontuações de Bernardino que me pareceram especialmente elucidativas ou pelo menos as escutei de outra maneira com relação a este tema: uma, sobre a política do cartel; outra, sobre o desejo do analista. Ele disse de forma muito simples, mas que me parece muito importante, que a política fundamental do cartel é: “Tu podes saber”. É interessante, pois não só indica o que orienta um cartel, mas também como é difícil a questão de se autorizar com relação ao saber enquanto uma enunciação que se pode extrair, provocar.

“Tu podes saber” implica autorizar-se a um saber que vai além da repetição. Que vai atrelado a uma elaboração. E ali nos dá a ideia de elaboração associada a um trabalho não como algo que se procura, mas que se apresenta como achado ao longo da laboração.

Mas também gostei do acréscimo que Iordan fez: “tu podes saber, não sem os outros”. Essa dimensão do que os outros no cartel, também provocados pelas suas questões, fazem ressoar implica que esse lugar de provocador provocado não está na intencionalidade, mas também nos diferentes cartelizantes de diferentes maneiras e de diferentes estilos. Mas, por que situar o Mais-um como provocador provocado? Porque ele está advertido dessa posição de certa maneira. Ele é parte do cartel e visa que ele funcione nessa lógica. Uma certa posição, identificação histérica, horizontal, que produz saber. Esta é a outra pontuação de Bernardino – a identificação histérica, do analisante enquanto quem produz saber –, mas também algo da ordem do discurso analítico, do desejo do analista em jogo, como Lacan ensina em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” – o desejo do analista abdica do controle, abdica radicalmente do poder. O desejo do analista é, na análise, o extremo oposto à vontade de poder. E o cartel pretende esse lugar oposto ao poder na estruturação do cartel. Faz buracos nas cabeças e abdica de se fazer de tapa-buraco.

Essa leitura do cartel é interessante porque introduz uma forma de pensar saber e poder no cartel. Nesse sentido, o cartel é dessegregativo: o poder que está em jogo é o de “podes saber”. Isso é fácil? De jeito nenhum, é um desafio constante, uma aposta colocada sobre a mesa o tempo todo. Por isso, aposta-se no cartel e não porque saibamos como funciona, quer dizer, que vai funcionar assim, há o real em jogo. Não há um saber acumulado com relação ao cartel.

Recentemente, participei de um cartel proposto com o fim de produzir um texto; apenas o Mais-um não produziria texto. Eu conhecia duas colegas; outro colega só de nome, pelos seus textos; o quarto, eu não tinha nem ideia de quem fosse. Portanto, não fomos nós que nos escolhemos. Nem escolhemos o tema, nem o Mais-um. Opa! Alerta! Não é a forma como classicamente se constitui um cartel. Mas, por outro lado, consentimos com a proposta que nos foi feita: a de trabalhar em cartel determinado tema. Houve, sim, a aposta de cada um de produzir um texto que pudesse ser sustentado no interior desse pequeno grupo, uma elaboração. A experiência foi muito interessante, pois apesar de o Mais-um não produzir um texto, a particularidade com que lhe tocava o que era dito, elaborado, foi muito importante para abrir um debate, perturbar suficientemente algumas “certezas” e produzir um texto que, mesmo que em nome próprio, leva a marca do não sem os outros. Como cartelizantes não sem certa inquietação, algo se descompletava, se faziam ponderações, perguntas, precisões, questionamentos. Foram poucas reuniões, espaçadas no tempo, entre a alegria do que se conseguiu transmitir e a perturbação do que foi mal dito, mal escutado.

Enfim, achei interessante trazer esta experiência de cartel, porque é difícil conseguir, por mais que o Mais-um tivesse querido, facilmente poderia deslizar para um grupo de trabalho de outra ordem. No final das contas tínhamos uma tarefa a cumprir. E como diz Bernardino, é todo um desafio não recuar diante das ameaças e seduções do superego[2]. Mas foi possível extrair um ponto que nos instigasse o suficiente sobre o tema, que nos tocasse, para poder saber algo dele. Poderia dizer, provocados o suficiente pelo tema. E dizê-lo em um número bem limitado de caracteres, isto é, poder extrair da citação a marca de uma enunciação. Cada um segundo seu estilo, de acordo com seu percurso, momento e sua inquietação, conseguiu produzir um texto. E por um querer saber. Posso dizer que neste caso houve efeito de cartel, com certeza não em todos, mas a própria proposta teve um valor de provocação. Falo que não é fácil, pois, também com outros colegas muito trabalhadores, faz tempo que estamos tentando nos encontrar para iniciar um cartel e não encontramos datas. Os impasses tomam as formas mais variadas.

Para terminar, só quero destacar que o Mais-um não é a causa do cartel e me parece que isto está no cerne do provocador-provocado. Lacan, através do cartel, convida a cada membro a trazer sua pergunta, sua própria questão, e colocá-la a trabalho, para subjetivar os enunciados, para extrair deles uma enunciação que é sempre singular. Nesse sentido, o trabalho deve ser realizado por cada membro do cartel e é fundamental que cada um coloque algo de si, pois se trata de produzir um saber que não exclua o que opera em cada um. Mas isso não é natural; é necessário o Mais-um como provocador -provocado.

[1] Miller, J.-A. Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada. In: ROCHA, A. (Org.). Manual de cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG, Scriptum, 2010. p. 55-61.
[2] Horne, B. Sobre a crise no cartel: há cartel sem crise?. In: Brown, N. (Org.) Cartel, novas leituras. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 105.

II Noite de Cartéis da Seção Sul.

Algumas considerações sobre o texto de Nohemí Brown.  

 Valéria Beatriz Araujo

Tendo como referencia dois sintagmas da II Noite de Cartéis (provocador e provocado) e seguindo uma proposta que Nohemí traz, de leituras de textos do livro Cartel, novas leituras[i], onde um comenta pontos do texto de outro e faz ressoar o que lhe tocou, gostaria de destacar alguns fragmentos do seu texto Os tempos do cartel[ii] e extrair algumas questões que me tocam em relação ao Mais-um. E seguir a partir de alguns pontos de fuga sobre esta máquina de guerra que é o cartel.

No texto Nohemí traz “a dimensão do tempo como um instrumento próprio da experiência”, “mas também do qual o Mais-um pode extrair sua função. Uma dimensão que diz de “uma singular relação com o tempo” “pensado a partir do “contemporâneo” de Agamben, que se refere a uma posição, alguém que não só percebe o escuro e o faz presente, mas também aquele que, dividindo e interpelando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos”. “Num tempo que implica o da consequência. Penso o lugar do Mais-um nesta implicação com o tempo.

Trago outro ponto de texto: “O produto de um cartel é a extração de uma experiência de interação, em uma articulação de intercâmbios, onde se destaca a enunciação”. Nohemí também pontua que “a elaboração provocada está em articulação com o provocador provocado”. Podemos dizer então que esta interação se remete aos elementos do cartel mais a sua articulação, pensando a articulação ligada a um conjunto, mais um (um elemento não semelhante). “Isso já é um lugar da estrutura, não de pessoa” (Tal como pontua Tarrab[iii], em seu texto O cartel e a política lacaniana, citando Miller). Não tanto uma pessoa como um lugar de estrutura, onde o conceito de estrutura acrescenta ao conjunto uma articulação; Neste lugar de estrutura é onde Miller coloca o Mais-um de Lacan, diz Tarrab. Seria então um lugar em que poderíamos pensar o Mais-um para além de provocador, também um provocado? Servindo-se deste lugar estrutural, mas também prescindindo dele?

Neste sentido, temos o Mais-um tomado ao modo de um líder funcional, porém “modesto, pobre, reduzido ao mínimo, de exercer uma função e, mais ainda, permutativa” [iv]. Mas com a potência de fazer valer o furo no saber autoritário, como enfatizam Nohemí e Rosário. Um trabalhador que se decide, ao modo bricoleur, pelo exemplo e não pelo modelo, tal como vemos na idéia de uma gambiarra.

Um último ponto e concluo. Considerando que não há cartel sem crise, como diz Bernardino Horne no texto Sobre a crise no cartel[v], a partir de uma provocação, podemos pensar sobre as várias crises passíveis de despontar no dispositivo. Entretanto, uma crise a se destacar num cartel não estaria no Mais-um, quando ele não consente, de alguma maneira, com este lugar no dispositivo e com esta “ética das consequências”? Quando se faz de tapa-buracos e não de fazedor de buracos, como diz Bernardino?

[i] Cartel, novas leituras. Nohemí Ibañez Brown (org). São Paulo: EBP, 2021.
[ii] Brown, Nohemí I. Os tempos do cartel, op. cit.
[iii] Tarrab, Mauricio. O cartel e a política, op. cit.
[iv] Miller, Jacques-Alain. Novas reflexões sobre o cartel. Disponivel em ebp.org.br/cartéis-e-intercambios/apresentação.
[v] Horne, Bernardino. Sobre a crise no cartel: há cartel sem crise?, op. cit.
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