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Lugar da escuta

Alexandre Nodari
Professor de Literatura Brasileira (UFSC)
  1. Em 1982, Anthony Seeger registra uma peroração de Petxi, especialista ritual kĩsêdjê, um discurso que, apesar de repetir, numa técnica oratória, a palavra kapẽrẽ, “fala”, “falar”, é uma exortação à escuta, baseada em sua própria experiência e em seu próprio exercício da audição. Nascido outro, “em uma aldeia de índios Wauja no Alto Xingu”, mas tendo sido raptado, com sua mãe, e adotado desde pequeno pelos Kĩsêdjê, Petxi ali se refere “à casa-dos-homens, no pátio, onde os jovens iniciados moravam até ter filhos, casar e ir morar na casa de suas esposas”, de “forma incomum” (tão incomum para Seeger a ponto de ele fazer essa glosa citada), como o “lugar da escuta”:

Crianças, vou falar a vocês. Ouçam a minha fala. Talvez vocês ouçam a minha fala. Nossos pais, nossos avós – não os meus, pois não nasci kĩsêdjê e tenho vergonha de falar na sua língua – sempre falaram com seus filhos. A sua mãe, a nossa mãe, o irmão da sua mãe, o seu pai falavam com vocês e vocês os ouviam falar. Vocês os ouviam falar. Vocês ouviam a fala deles e se comportavam direito. Vocês obedeciam à fala deles e se comportavam direito. Nossos doadores de nomes sempre fizeram assim. Falavam com seus filhos e moravam juntos. Falavam com seus netos. Estes não se zangavam, apenas ouviam a fala deles.
Os rapazes que moravam na casa-dos-homens. Os filhos, netos, iam ao lugar da escuta.

É impossível afirmar se a estranheza da expressão, que, em sua tradução ao português, soa quase como a definição de uma clínica psicanalítica, provém de um modo ritual de adensar a linguagem (para fazer uso da definição de poesia de Jerome Rothenberg), comum a diversas artes verbais ameríndias, mas não só a elas (já a Poética aristotélica recomendava o uso de estrangeirismos, barbarismos, metáforas, etc., para tornar a linguagem “elevada”), se antes tem como fonte a condição estrangeira de Petxi, a qual ele remete e que talvez estivesse conscientemente querendo ressaltar, ou ainda se o estranhamento não deriva do antropólogo, hipótese menos provável, embora propícia para um exercício especulativo. Seja como for, o “lugar da escuta”, expressão que é uma fala-sobre-a-escuta (inserida numa fala sobre a escuta), estranha aos nossos ouvidos (e mesmo aos dos nativos, levando em consideração tanto a observação de Seeger quanto ao seu caráter incomum, quanto o conteúdo da peroração de Petxi, crítico à falta do exercício da escuta na casa-dos-homens pelos mais jovens), por isso mesmo, ativa nossa audição. Ela nos leva a especular que talvez seja só nessa posição estrangeira (interna ou externa) que possa constituir um lugar da escuta.

  1. “Lugar de escuta” é uma expressão que tem sido proposta em várias frentes numa ressonância-dissonante (ou disso-ressonância) com a noção de “lugar de fala”. Todavia, nosso interesse nela é outro, até porque a expressão também é outra: lugar da escuta, e não lugar de escuta. A diferença é mínima, e pode muito bem ser um desvio tradutório, afinal, no “original”, Why Suyá Sing, a expressão em inglês que traduz o termo kĩsêdjê é “listening place”, que seria “melhor” vertido por “lugar de escuta”. Mas, a nosso ver, esse desvio apresenta mais uma camada de estranhamento, agora em nossa própria língua, ou melhor dizendo, traduz o estranhamento do original (kĩsêdjê) para a nossa própria língua. Pois se lugar de escuta designa a posição de um sujeito(aquele que ouve, que está disposto a ouvir), o lugar da escuta é um lugar em que a escuta tem lugar, o lugar dela – ou seja, o lugar da escuta seria a condição de todo lugar de escuta. O desvio tradutório, assim, ademais, clarificaria o sentido do próprio original, afinal, a casa-dos-homens é um lugar da escuta que possibilita o lugar de escuta.
  2. Um bom exemplo do lugar da escuta é a “tradução total” feita por Rothenberg da décima-terceira das Horse-songs, as Canções-cavalos, de Frank Mitchell. É difícil descrever aqui o procedimento, e mesmo a descrição do próprio tradutor, em Etnopoesia do milênio (no cap. “Tradução total: uma experiência na apresentação de poesia ameríndia”), não dá conta da experiência de escutá-lo em ato (recomendo ao leitor que assista uma vocalização recente de sua tradução disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1Wk1XoFYDe4), pois se trata justamente de uma trans-posição do lugar em que tem lugar a escuta. Em primeiro lugar, Rothenberg incorpora em sua tradução o que os nativos costumam chamar de “palavras de música”, aqueles termos destituídos de sentido semântico, mas que fazem sentido em outro sentido (nos sentidos outros que o intelectual), ou, para fazer uso de uma expressão de Mário de Andrade, ele traduz (mantendo-a) a “indestinação inteclectual do seu som”. Além disso, incorpora também o ruído ambiente, e ainda, na medida em que se tratava de uma canção ritual e coletiva, a sobreposição de vozes dos outros cantores – baseada numa extrapolação especulativa do tradutor, já que sua base é a versão gravada apenas por Mitchell (uma reprodução). O resultado é uma bela, embora confusa, massa sonora, que beira a lalanguede que falava Lacan, e uma crítica, altamente sedutora de ser feita a um primeiro contato, seria apontar a sua incompreensibilidade referencial-semântica. Contudo, tal crítica partiria do princípio de que ele estava traduzindo a fala (do cantor) e não a escuta (dele mesmo), ou seja, que ele estava traduzindo um lugar de fala (de um “eu”) e não um lugar de escuta (de um “tu” ou “ele”). A magistralidade formal do gesto de Rothenberg, a meu ver, está em traduzir não a partir da posição do enunciador nativo, e nem mesmo do auditório/ouvinte nativo, mas sim do ouvinte estrangeiro. Ele não omite a própria posição de estrangeiro, o próprio lugar de escuta, antes, busca traduzir essa estrangeiridadepara a própria língua: ele transporta (trans-põe) esse lugar de escuta estrangeiro para o inglês, sua língua nativa. Não se trata de reproduzir o lugar de fala, ou mesmo de escuta, do outro, mas de transpor um lugar de escuta, o seu próprio lugar de escuta numa língua estrangeira, para dentro da sua própria língua nativa. A língua nativa se torna estrangeira, e o espaço do poema (a tradução/performance do canto) se torna, assim, um lugar da escuta, que demanda que seus leitores ocupem um lugar (estrangeiro) de escuta, dando lugar à indestinação do sentido ou sentido à indestinação, fazendo, em suma, da indestinação, o próprio sentido.
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