#05 - Outubro 2022
Lugar da escuta
Alexandre Nodari
Professor de Literatura Brasileira (UFSC)
- Em 1982, Anthony Seeger registra uma peroração de Petxi, especialista ritual kĩsêdjê, um discurso que, apesar de repetir, numa técnica oratória, a palavra kapẽrẽ, “fala”, “falar”, é uma exortação à escuta, baseada em sua própria experiência e em seu próprio exercício da audição. Nascido outro, “em uma aldeia de índios Wauja no Alto Xingu”, mas tendo sido raptado, com sua mãe, e adotado desde pequeno pelos Kĩsêdjê, Petxi ali se refere “à casa-dos-homens, no pátio, onde os jovens iniciados moravam até ter filhos, casar e ir morar na casa de suas esposas”, de “forma incomum” (tão incomum para Seeger a ponto de ele fazer essa glosa citada), como o “lugar da escuta”:
Crianças, vou falar a vocês. Ouçam a minha fala. Talvez vocês ouçam a minha fala. Nossos pais, nossos avós – não os meus, pois não nasci kĩsêdjê e tenho vergonha de falar na sua língua – sempre falaram com seus filhos. A sua mãe, a nossa mãe, o irmão da sua mãe, o seu pai falavam com vocês e vocês os ouviam falar. Vocês os ouviam falar. Vocês ouviam a fala deles e se comportavam direito. Vocês obedeciam à fala deles e se comportavam direito. Nossos doadores de nomes sempre fizeram assim. Falavam com seus filhos e moravam juntos. Falavam com seus netos. Estes não se zangavam, apenas ouviam a fala deles.
Os rapazes que moravam na casa-dos-homens. Os filhos, netos, iam ao lugar da escuta.
É impossível afirmar se a estranheza da expressão, que, em sua tradução ao português, soa quase como a definição de uma clínica psicanalítica, provém de um modo ritual de adensar a linguagem (para fazer uso da definição de poesia de Jerome Rothenberg), comum a diversas artes verbais ameríndias, mas não só a elas (já a Poética aristotélica recomendava o uso de estrangeirismos, barbarismos, metáforas, etc., para tornar a linguagem “elevada”), se antes tem como fonte a condição estrangeira de Petxi, a qual ele remete e que talvez estivesse conscientemente querendo ressaltar, ou ainda se o estranhamento não deriva do antropólogo, hipótese menos provável, embora propícia para um exercício especulativo. Seja como for, o “lugar da escuta”, expressão que é uma fala-sobre-a-escuta (inserida numa fala sobre a escuta), estranha aos nossos ouvidos (e mesmo aos dos nativos, levando em consideração tanto a observação de Seeger quanto ao seu caráter incomum, quanto o conteúdo da peroração de Petxi, crítico à falta do exercício da escuta na casa-dos-homens pelos mais jovens), por isso mesmo, ativa nossa audição. Ela nos leva a especular que talvez seja só nessa posição estrangeira (interna ou externa) que possa constituir um lugar da escuta.
- “Lugar de escuta” é uma expressão que tem sido proposta em várias frentes numa ressonância-dissonante (ou disso-ressonância) com a noção de “lugar de fala”. Todavia, nosso interesse nela é outro, até porque a expressão também é outra: lugar da escuta, e não lugar de escuta. A diferença é mínima, e pode muito bem ser um desvio tradutório, afinal, no “original”, Why Suyá Sing, a expressão em inglês que traduz o termo kĩsêdjê é “listening place”, que seria “melhor” vertido por “lugar de escuta”. Mas, a nosso ver, esse desvio apresenta mais uma camada de estranhamento, agora em nossa própria língua, ou melhor dizendo, traduz o estranhamento do original (kĩsêdjê) para a nossa própria língua. Pois se lugar de escuta designa a posição de um sujeito(aquele que ouve, que está disposto a ouvir), o lugar da escuta é um lugar em que a escuta tem lugar, o lugar dela – ou seja, o lugar da escuta seria a condição de todo lugar de escuta. O desvio tradutório, assim, ademais, clarificaria o sentido do próprio original, afinal, a casa-dos-homens é um lugar da escuta que possibilita o lugar de escuta.
- Um bom exemplo do lugar da escuta é a “tradução total” feita por Rothenberg da décima-terceira das Horse-songs, as Canções-cavalos, de Frank Mitchell. É difícil descrever aqui o procedimento, e mesmo a descrição do próprio tradutor, em Etnopoesia do milênio (no cap. “Tradução total: uma experiência na apresentação de poesia ameríndia”), não dá conta da experiência de escutá-lo em ato (recomendo ao leitor que assista uma vocalização recente de sua tradução disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1Wk1XoFYDe4), pois se trata justamente de uma trans-posição do lugar em que tem lugar a escuta. Em primeiro lugar, Rothenberg incorpora em sua tradução o que os nativos costumam chamar de “palavras de música”, aqueles termos destituídos de sentido semântico, mas que fazem sentido em outro sentido (nos sentidos outros que o intelectual), ou, para fazer uso de uma expressão de Mário de Andrade, ele traduz (mantendo-a) a “indestinação inteclectual do seu som”. Além disso, incorpora também o ruído ambiente, e ainda, na medida em que se tratava de uma canção ritual e coletiva, a sobreposição de vozes dos outros cantores – baseada numa extrapolação especulativa do tradutor, já que sua base é a versão gravada apenas por Mitchell (uma reprodução). O resultado é uma bela, embora confusa, massa sonora, que beira a lalanguede que falava Lacan, e uma crítica, altamente sedutora de ser feita a um primeiro contato, seria apontar a sua incompreensibilidade referencial-semântica. Contudo, tal crítica partiria do princípio de que ele estava traduzindo a fala (do cantor) e não a escuta (dele mesmo), ou seja, que ele estava traduzindo um lugar de fala (de um “eu”) e não um lugar de escuta (de um “tu” ou “ele”). A magistralidade formal do gesto de Rothenberg, a meu ver, está em traduzir não a partir da posição do enunciador nativo, e nem mesmo do auditório/ouvinte nativo, mas sim do ouvinte estrangeiro. Ele não omite a própria posição de estrangeiro, o próprio lugar de escuta, antes, busca traduzir essa estrangeiridadepara a própria língua: ele transporta (trans-põe) esse lugar de escuta estrangeiro para o inglês, sua língua nativa. Não se trata de reproduzir o lugar de fala, ou mesmo de escuta, do outro, mas de transpor um lugar de escuta, o seu próprio lugar de escuta numa língua estrangeira, para dentro da sua própria língua nativa. A língua nativa se torna estrangeira, e o espaço do poema (a tradução/performance do canto) se torna, assim, um lugar da escuta, que demanda que seus leitores ocupem um lugar (estrangeiro) de escuta, dando lugar à indestinação do sentido ou sentido à indestinação, fazendo, em suma, da indestinação, o próprio sentido.