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Ler um sintoma: primeira escansão

Paula Lermen
Participante da Comissão de Referências Bibliográficas

 

“Convém dizer que a etimologia de repisar [seriner] nos conduz diretamente à sereia [sirene]. Isso é textual, está no Dicionário etimilógico, não sou eu que me entrego aqui a um canto análogo.
Sem dúvida, é por essa razão que o psicanalista, como fez Ulisses em tal conjuntura, fica preso a um mastro. Naturalmente, para que dure esse canto das sereias, enquanto o analista permanece enfeitiçado, isto é, ouvindo tudo de maneira errada, ele precisa continuar preso ao mastro, no qual vocês não podem deixar de reconhecer o falo, ou seja, o significado maior, global (grifo adicionado). Isso só convém a todo mundo na medida em que não tem nenhuma consequência incômoda, já que foi feito para isso, para o próprio futuro psicanalítico, isto é, para todos os que estão no mesmo barco.
Nem por isso ele deixa de entender mal esse repisar da experiência […] O que se passa nesse barco, onde há também seres dos dois sexos, é notável, entretanto. É que me sucede ouvir da boca de pessoas que às vezes me vêm visitar desses barcos, a mim, meu Deus, que estou em outro, que nele não imperam as mesmas regras”.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19: …ou pior [1971-1972]. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, pp. 18-19.

O repisar é algo que se passa em uma análise. Re-pisamos sempre no mesmo sentido, seguindo as pegadas da fantasia – o canto das sereias.

Neste trecho do seminário 19, no qual Lacan desenvolve a lógica do não-todo, ele faz equivaler a significação fálica ao significado global, denunciado como um refúgio do psicanalista, onde ele pode ficar preso.

É fácil lembrarmos aqui da orientação de Freud, na Interpretação dos sonhos, para que possamos escutar os detalhes que escapam ao sentido, pois é nos detalhes, e não na narrativa maior encobridora, que localizaremos aquilo que pulsa no sintoma. Mas, na Interpretação dos sonhos, Freud ainda está amarrado ao mastro, e ali mesmo os detalhes acabarão servindo sempre ao sentido fálico, como chaves secretas de acesso. Lacan nos indica que estamos agora em outro barco, no qual a verdade só pode ser meio-escutada através dos furos, dos poros: o corpo é o que faz furo no sentido sexual. “Fora do significado global” é uma forma de dizer “não-todo”.

As reticências do título do seminário, “…ou pior”, marcam um lugar para os vazios, uma vez que o lugar vazio seria a única forma de “agarrar algo com a linguagem” (p. 12). Não se trata mais da questão dos limites da linguagem para a apreender o real, mas de compreender que o discurso é feito pelo real que nele se esgueira, de escutar o real que impregna a linguagem.

Ler o sintoma a contrapelo, nos sugere Miller. Me ocorre pensar que enquanto o pelo cresce sempre no mesmo sentido e certamente é aparável (pode caber na fantasia), o que aparece no contrapelo é o corpo, não-todo: são os poros pulsantes e as arestas inaparáveis.

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