Gustavo Ramos (EBP/AMP) Teresa Pavone (EBP/AMP) O VI Boletim da Seção Sul, assim como…
Incurável da estrutura
Célia Ferreira Carta Winter (EBP/AMP)
No final do Congresso da AMP, “Todo mundo é louco”, Cristiane Alberti faz referência a estrutura tripartite, que serve de bússola e orienta a escolha do próximo Congresso em 2026, assim como ocorreu nos Congressos anteriores. Seguindo essa lógica de três, os aforismos de Lacan nos convocam ao trabalho: o primeiro, em 2022, “A Mulher não existe”; seguido em 2024, por “Todo mundo é louco”. Este, pinçado por Miller, em um momento que era fundamental defender o Departamento de Psicanálise de Vincennes, cuja existência, no âmago da Universidade de Paris 8, estava ameaçada. Aliás, afirma Miller, “a psicanálise é ameaçada, todos os anos – por razões conjunturais e por uma razão de estrutura”.
Mantendo a tradição, no final do Congresso, o novo tema de trabalho é apresentado. A proposição: “Não há relação sexual” orientará o trabalho das sete Escolas de Psicanálise. Com “Todo mundo é louco”, Miller chama a atenção para a importância da clínica em um momento em que o discurso da despatologização a banaliza. Não haverá mais patologias, haverá, já há, em vez disso, estilos de vida, livremente escolhidos – uma liberdade imprescritível, porque ela é a dos sujeitos de direito (droit). Digamos que o reto (droit) leva a melhor sobre o torto[1]. Com o tema: “Relação sexual não existe”, nos convida, como sempre, a debater a clínica, o epistêmico e o político.
A atualidade e a impossibilidade de escrever tal relação que caracteriza a sexualidade do ser falante, está intimamente ligada ao tema proposto pelo Encontro do Campo Freudiano: “Corpos aprisionados pelos discursos… e seus restos!”. Diante dos limites impostos pela prevalência do simbólico, que determinava a forma como a psicanálise se inseria no campo da fala e da linguagem, no primeiro ensino, Lacan inclui o saber fazer com a opacidade do gozo, e na concepção de corpo, na vibração do vivo, uma noção de inconsciente que não se resume ao recalcado, o inconsciente Real.
O “Mal-entendido”, proposto por Patrícia Badari, na abertura das atividades da nossa Seção, aponta para esse “não há” indicado por Lacan. O mal-entendido não diz respeito a algo que se prestaria a um bem entender, que não teria sido bem entendido é, antes, um mais-ou-menos, uma bafouillage (barafunda) dos antecedentes, que constitui o campo do falasser.
Lacan aborda a má compreensão do corpo, como uma característica decorrente do encontro entre o significante e a carne, resultando em um evento corporal que fixa um gozo refratário ao sentido e estabelece o campo do humano e do falasser. Esse mal-entendido não se refere a uma falta de compreensão que poderia ser esclarecida, mas, sim, uma complexidade inerente à relação entre corpo, linguagem e gozo. Como aponta Bassols: “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a (im)possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho, que aparece como Outro estranho e se encarna ali, onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher[2].
Na clínica, a questão é encontrar formas de abordar esse Real, sem deixar de levar em conta os limites do simbólico, o vazio de sentido e o incurável da estrutura.
Tarefa cada vez mais desafiadora, em tempos de crença em atalhos que nos poupe do mal-estar do existir. O analista, na contramão dessa corrente, suporta a existência do Real, e não ocupa o lugar de tudo saber, mas não basta, é preciso que também o analisante consinta com o não saber. Ao sustentar isso que é da ordem do impossível de se escrever, que o analista pode atuar como aquele que implica o sujeito “na sombra que se renova frente a qualquer avanço tecnocientífico”. Aqui nos valemos da música, da palavra poética, de Chico Buarque e Milton Nascimento que também apontam para aquilo do humano que não se escreve: “Que será que me dá? [..] Que me bole por dentro [..] Que dá dentro da gente [..] Que não têm remédio, nem nunca terá. O que não têm receita”, o que não tem palavra. A Inteligência Artificial poderia capturar o “que não tem nome nem nunca terá”?[3]
A inteligência artificial se apresenta como resposta a toda demanda, ela não cessa de escrever, enquanto a psicanálise não responde, porque lida com aquilo que não cessa de não se escrever. O analista se oferece como suporte para a demanda, mas não responde a nenhuma, já que respondê-la é fazer calar o desejo.
O tema proposto por Patrícia Badari, “Mal-Entendido”, e o tema do XXV Encontro do Campo Freudiano: “Corpos aprisionados pelo discurso…. e seus restos, nos servirá em 2024, de orientação epistêmica, clínica e política, nas atividades da Seção Sul.
Em tempos de ChatGPT e da Inteligência Artificial, a quarta revolução industrial, marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas, tem como limite o Real, e o que nos torna humanos: lalíngua. Linguagem que comporta a face do grande Outro, e que levou Lacan dizer: “não há relação sexual, tudo o que for relação sexual é um conjunto vazio…..e, há relação sexual entre três gerações, como aqueles que nos ensinaram a língua, mais o Supereu que, por meio dela, eles nos veicularam”.[4] É no furo causado pelo mal-entendido que brota algo vivo, que pode ser transmitido e escutado, ao romper com o conformismo e a homogeneidade do discurso, ponto que nenhuma IA pode acessar.