#04 - SETEMBRO 2023
Há Um que louco-motiva
Verônica Paola Montenegro[1]
“O pai não é universal, é o que se mantém fora do universal como o singular. O universal está no nível da função, mas ela só se encarna, opera, na forma da singularidade. Isso significa que convém não afogar a existência devido à nossa crença no todo – “isso vale para todos” –, mas no todo, do ponto de vista do todo, substituir o Um. É a indicação dada por esta formulação de Lacan: Há o Um (Yad’lun). Eu a retomo aqui, no nível clínico, como um convite a sacrificar o totalitarismo do universal à singularidade do Um.”
Jacques-Alain Miller, “O ser e o Um”, Lição XI, Quarta-feira, 4 de maio de 2011.

Miller utiliza, nesta citação, o mesmo significante a partir de dois pontos: por um lado, trata-se da singularidade da função de um pai que opera particularizando o sujeito no mundo, e, por outro lado, da singularidade do Um, ou seja, o furo do acontecimento traumático que produz uma marca no corpo, singularizando o modo de gozo do falasser. Como fazermos conversar estas questões, delicadas e complexas, com os três eixos da 4a Jornada da EBP-Sul que está se aproximando? Será o desafio desta escansão.
Iniciamos com uma provocação que poderia ajudar a discernir duas considerações às quais seria interessante estarmos atentos na clínica. Por um lado, a de que o sustento inflexível das estruturas amparadas pelo Nome do Pai nos faça cair numa categorização quase que “DSMeando” rótulos que interfiram na escuta. Por outro lado, a de que abrir mão de toda orientação estrutural nos deixe fora da linha do caso. Podemos dizer que estamos advertidos disto? Como? Qual é a maneira? Qual é o tom de escuta apurado do Um que louco-motiva, levando em consideração as orientações indispensáveis para a direção da cura? No trem da clínica, até qual estação a lógica estrutural nos orienta na escuta, e em qual estação poderia interferir o falasser no percurso dos trilhos da sua singularidade?
No eixo “O objeto a não tem sexo”, Oscar Reymundo (EBP/AMP) nos adverte: “o termo ‘transexualismo’, com o sufixo ‘ismo’, usado nas intervenções escritas e faladas de psicanalistas, deixa transparecer a patologização do fenômeno transexual” (2023, s/p.), ponto extremamente importante do qual precisamos estar advertidos, porque “nos ensinam sobre as posições sexuadas nas quais a natureza, definitivamente, não é a norma e que, ao mesmo tempo, assinalam um desafio: que o psicanalista se deixe ensinar, dentre outras questões, que não existe nenhuma relação entre a transexualidade e alguma estrutura clínica” (REYMUNDO, 2023, s/p.). Oscar nos oferece uma orientação precisa sobre a importância de reparar na maneira de nos servirmos da clínica estrutural, porque, neste recorte, é evidente que poderia nos deixar cair nas redes de um “DSM psicanalítico” que obstaculizaria a pulsação singular dos trilhos de uma análise.
Maria Teresa Wendhausen (EBP/AMP), no eixo “Salvar a clínica”, nos indica: “A clínica universal do delírio é a que ele opõe aí à clínica diferencial das psicoses e propõe que ela seja o fundamento desta última” (2023, s/p.), e nos orienta com precisão: “à clínica borromeana, aquela para a qual importa mais saber de que maneira o sujeito arranja para si um modo de amarração do gozo, do que da existência ou não do Nome-do-pai” (WENDHAUSEN, 2023, s/p.). Podemos pensar que a clínica universal do delírio e a clínica diferencial das psicoses, a clínica do Nome do Pai e a clínica borromeana, o primeiro ensino e o último ensino, são duas escutas? Elas desvelariam uma tensão à qual precisamos estar atentos? Esta tensão é manejada de qual maneira?
“Que bússola é essa?” é a pergunta que Nohemí Brown (EBP/AMP) trabalha no terceiro eixo e com a qual nos ajuda a contornar o Há o Um que Miller traz de Lacan: “Neste sentido, a construção de um saber diante do mais singular, dessa marca de gozo, tem a estrutura de linguagem do delírio. Desde esta perspectiva, todos delirantes! Podemos dizer, em uma análise o que orienta é essa operação de subtração que permite isolar ou cingir um significante com valor de gozo, sempre enigmático” (BROWN, 2023, s/p.).
Os eixos nos evidenciam que há um impasse, na clínica atual, ao qual é imprescindível nos dedicarmos de maneira urgente. Oscar ressalta: “A experiência clínica analítica nos mostra as tentativas do sujeito transexual de encontrar um nome próprio que lhe permita nomear um gozo opaco, que o simbólico não consegue absorver ‘aí onde nem o Nome-do-Pai, nem o falo seguem sendo semblantes pertinentes para fazê-lo’” (FAJNWAKS apud REYMUNDO, 2023, s/p.). Teresa questiona: “Não seria esta a questão que hoje enquanto analistas temos que nos a ver, esta vertente do gozo, nos tempos em que o Outro não mais existe, tempos da queda e até da evaporação do pai? Como cada um se vira com este gozo? Como o analista opera aí?” (WENDHAUSEN, 2023, s/p.), e Nohemí nos ajuda a enlaçar o tema com uma orientação: “[…] há algo irredutível nesse gozo. O real do gozo; mais do que decifrá-lo, há que localizá-lo para saber-fazer com ele”.
Este impasse devolve um desafio que, hoje, nos convoca a partir de um outro lugar, onde o Nome do Pai da clínica do édipo não dá conta. Há uma outra conta a ser trilhada, a conta que produzem as amarrações singulares e que nos leva a uma pergunta fundamental, que o eixo “Que bússola é essa?” nos traz: Como orientarmos na escuta? Teresa nos esclarece com a “docilidade do analista” (2023, s/p.), Oscar nos ajuda com que “o psicanalista se deixe ensinar” (2023, s/p.), e Nohemí nos adverte sobre o analista se orientar para e pelo real, tendo “por missão enfrentá-lo” (2023, s/p.).
Jacques Lacan, no seu texto “Solo vale la pena sudar por lo singular” (2022), finaliza com um rumo preciso: “El análisis es algo que nos indica que no hay otra cosa que el nudo del síntoma, y es evidente que hay que sudar bastante para lograr asirlo, aislarlo. Hay que sudar tanto que incluso es posible hacerse un nombre, como se dice, con esa exudación. En ciertos casos, eso culmina en lo mejor de lo mejor que puede hacerse: una obra de arte. Nuestra intención no es ésa; no es en absoluto llevar a alguien a hacerse un nombre ni a hacer una obra de arte. Es más bien algo que consiste en incitarlo a pasar por el buen agujero de lo que a él se le ofrece como singular.”
Há diferentes modos de atravessar um processo de análise para isolar este singular; porém, definir quais são esses modos não são do interesse do analista: o que, de fato, orienta a direção de uma cura é esse “bom furo”. Portanto, é importante questionarmos qual é o sentido do bom aqui e ressaltar que não se trata de fazer um juízo de valor como se fosse o avesso do mau. Há dois pontos que Lacan parece assinalar para pensarmos o sentido do bom, o primeiro trata do que se lhe oferece ao falasser, apenas a ele, e, por um outro lado, trata-se de que é bom porque é singular. Isto é, porque se lhe oferece apenas a ele, é singular e, portanto, bom. Não tem o mesmo bom furo para dois falasseres, Há Um-sozinho.
Seriam estes modos de esboçar o Há Um que louco-motiva? Do que se trata o convite que Miller (2011) nos faz para “sacrificar o totalitarismo do universal à singularidade do Um”? Há recortes da clínica de vocês que possam nos ajudar a delinear estas questões? Esta jornada é uma oportunidade para bordear o vivo da clínica atual, para nos animar a questionar modos de o analista ser dócil às contingências que apontem trilhos possíveis de saber fazer com este bom furo, do que se lhe oferece a cada Um como singular.