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Ficções e real na psicanálise e na cultura: do ser à ex-sistência
Fabián Fajnwaks. Membro da EOL, da ECF e da AMP
Falar sobre o que não existe: o analisando não faz nada além disso, por vezes, durante longos anos de análise. Que os unicórnios existem, que no Universo há círculos que são quadrados e que 2+2 pode ser igual a 5. É exatamente isso que pode levar alguém a consultar um analista. Que tais coisas “vistas e ouvidas”, como escreveu Freud, possam constituir a origem do trauma; que o analisando suponha a existência de um Outro, um Outro mau que deseja sua castração ou que quer gozar dele ou dela; que os homens ou as mulheres têm tal ou tal característica que impede ou dificulta abordá-los – são essas coisas que se estruturam a partir da fantasia fundamental e sobre as quais se sustentam os sintomas. Com relação a isso, Freud mantém uma posição bastante rigorosa: lembremo-nos com quanta energia ele defende em seu artigo “Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade” (1908) que, por trás de todo sintoma, se encontra uma fantasia inconsciente. Os analisandos, dessa forma, falam durante muito tempo sobre coisas que não existem, mas que, ainda assim, são. Elas são porque possuem uma existência na língua que o sujeito fala, em sua língua pessoal, sua lalangue que dá consistência a suas fixões, como escreve J. Lacan, ficções que fixam o gozo do ser falante. Quantas vezes os analisandos podem se dar conta, ao longo de sua análise, de terem atribuído uma significação errada a certo termo, sobretudo quando se trata de sujeitos que são, como é o caso da maioria hoje em dia, plurilíngues, o que favorece as mudanças de sentido entre as diferentes línguas? Por exemplo, quando, aos 14 anos, eu descobri o português, dizer obrigado me parecia querer evocar obligado, no espanhol que então eu falava, fazendo referência, assim, à obrigação à qual nos remete o fato de dever agradecer – eu os deixo imaginar o gozo que havia aí, ainda que, nessa descrição, ele possa parecer banal.
É sobre a relação entre a ficção e o real, a relação entre o ser e a existência que nós nos questionamos aqui, pois essa relação se vê questionada no mundo da política atual, no campo daquilo que se tornou habitual chamar de pós-verdade ou fake news. Trata-se de um problema cujo fundamento epistemológico foi abordado por Jean-François Lyotard, que o reconheceu como uma modalidade particular do fenômeno pós-moderno de desaparecimento das grandes narrativas que estruturam a experiência dos seres falantes. Mas também se trata de uma questão que pode ser esclarecida à luz da experiência de uma análise, por ser essencialmente uma experiência da palavra, o que permite situar as relações existentes entre o simbólico e o real da maneira mais irredutível possível. Essas relações podem ser observadas também na literatura, em torno da questão da autoficção, gênero que se tornou tão popular nos últimos tempos.
Pretendo abordar os três eixos da relação entre ficções e verdade, seguindo os eixos que Louise Lhullier me propôs: a Clínica, a Epistemologia e a Política.
A era da pós verdade e dos fake news: o nonsense na Política
Façamos uma pequena revisão histórica para situar o termo pós-verdade. Trata-se de um termo que apareceu por volta de 2004, quando o escritor americano Ralph Keyes o utilizou em seu livro The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Nesse mesmo ano, o jornalista Eric Alterman falou de um “ambiente político pós-verdade” e de “presidência pós-verdade” ao analisar as falsas afirmações promovidas pela administração de Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001. A questão da relação entre o verdadeiro e o falso no universo político-midiático – citando o excelente artigo da Wikipédia a respeito da pós-verdade – é frequentemente objeto de debates nos Estados Unidos de diferentes maneiras. Em 2005, o humorista Stephen Colbert introduziu o neologismo “truthiness” para expressar o fato de que podemos considerar algo como verdadeiro tendo por base simples preconcepções de ordem afetiva, sem sequer considerar os fatos que são afirmados. A expressão “post-truth politics” se tornou popular em 2010 para designar “uma cultura política na qual a opinião pública e as mídias estão quase inteiramente desconectadas da política e dos conteúdos da legislação”. Mas poderíamos evocar também como característica dessa era da pós-verdade o emprego dessas mesmas mídias não só a serviço do estabelecimento de uma legitimidade política, mas também para manipular a opinião pública a partir da difusão de informações favoráveis à ação de determinado governo. É o que parece ter mostrado a longa experiência na Itália. Na França, a partir dos anos 2010, começa a se consolidar uma situação na qual os homens políticos, ao mesmo tempo, se veem temerosos com relação ao povo e vivem à margem de suas preocupações. Essa separação é favorecida pela formação de tecnocratas na École Nationale d’Administration.
Dois fatos distintos vieram, ao mesmo tempo, cristalizar e acelerar as expressões da era pós-fatual e da pós-verdade: de um lado, o Brexit, em 2016, medida que recebeu boa parte de seu apoio graças à difusão de fake news a respeito de falsas projeções sobre a dependência da Grã-Bretanha com relação a Bruxelas; e, de outro lado, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em novembro desse mesmo ano. A difusão de anti-verdades e mesmo de mentiras contribuiu com esses dois acontecimentos. Parece-me particularmente digno de nota o termo empregado pela porta-voz do governo Trump, Kellyanne Conway, em 22 de janeiro de 2017, dois dias após a posse presidencial, para designar a forma como a imprensa teria relatado a cerimônia da posse. Segundo a imprensa, a multidão presente teria sido menos numerosa do que em eleições precedentes, informação que Conway qualificou de “fatos alternativos”. Trata-se de um termo digno do famoso livro de George Orwell, 1984, para qualificar fatos que não são convenientes para um governo!
Outros “fatos alternativos” ainda podem ser apontados, como, por exemplo, o anúncio do governo ucraniano de que o jornalista russo Arkadi Babtchenko, conhecido por suas posições pró-russas, teria sido assassinado, anúncio que foi desmentido no dia seguinte como uma “informação falsa” que teria sido difundida “no intuito de disfarçar um atentado programado pela Rússia e de capturar os assassinos mercenários recrutados para esse crime”. Trata-se de um verdadeiro exercício de “pregar o falso para obter o verdadeiro” em Política, o que dá uma verdadeira utilidade às fake news.
Poderíamos ir ainda mais longe e identificar o início da era da pós-verdade com o início da pós-modernidade. Deveríamos ver então o ensaio fundamental escrito por Jean-François Lyotard no início dos anos 80, quando ele já previa, de forma visionária, a transformação que a informatização crescente da sociedade e a tecnologização do saber produzido viriam a promover na linguagem, reduzindo-a a “jogos de linguagem”, termo já empregado por Wittgenstein. Tais jogos de linguagem implicariam, para Lyotard, “uma incidência sobre a própria natureza do saber e da verdade”[1]. Lyotard já anunciava “o fim das grandes narrativas”, o que determinaria que a própria verdade seria subordinada a um relativismo regido pelas regras de discurso que operam na micro-narrativa. A verdade seria doravante subordinada à lógica interna de um texto, perdendo assim seu caráter transcendente. O saber assim se iguala a seu “valor de uso”.
O valor da verdade será doravante determinado segundo seu valor de troca e pela possibilidade de sua mercantilização em um mercado mundial, que os GAFA, por exemplo, encarnam de forma concreta nos dias atuais. Esse saber que é vendido em um mercado cognitivo mundializado tem uma área de aplicação extremamente limitada, determinada pelo valor prático correspondente a sua possibilidade de ser vendida e utilizada em um campo de aplicação pragmático.
Todo esse background constitui a base para a eliminação do lugar ocupado pela verdade no campo social, dando espaço à pós-verdade, o fake, que se consolida como destino inexorável da palavra em nossa civilização. A própria civilização parece se aproximar daquilo que o discurso analítico descobre no campo da clínica: que verdade e falsidade constituem duas faces que parecem dar continuidade uma à outra na fita de Moebius. Lembremo-nos daquilo que Freud formula em seu famoso texto sobre as “Construções em análise”: que a resposta “sim” ou “não” do analisando a uma construção do analista tem exatamente o mesmo valor e que é principalmente o conteúdo daquilo que se associa, seguindo a construção trazida pelo analista, que permite verificar se o analisando aceita ou recusa a interpretação em questão. Tal formulação freudiana, que se exprime na Traumdeutung como a constatação de que o inconsciente não conhece a noção de contradição, seria suficiente por si só para subverter os princípios presentes na lógica aristotélica. Muito há a ser dito com relação à Lógica, pois o verdadeiro e o falso são, antes de mais nada, categorias lógicas. As lógicas inconscientes que derivam do teorema de Gödel demonstram que se pode concluir que determinado teorema é verdadeiro mesmo se todas as suas proposições não são verificáveis e mesmo se ele contém proposições falsas. A inconsistência presente no teorema permite tais imperfeições. A Lógica chega aí ao apogeu de sua tolerância com relação a um sistema inconsistente, na medida em que pode trabalhar, ao mesmo tempo, com proposições verdadeiras, não-verificáveis e mesmo falsas como parte de um mesmo teorema. Ainda assim, não existe lógica que possa promover proposições verdadeiras a partir de proposições falsas, pois isso colocaria em xeque todo o sistema de proposições – coisa que, por outro lado, se pode fazer na psicanálise. E é aí que a verdade intervém. Pois não há nenhum problema em formular proposições que, sem serem exatas, ainda assim são verdadeiras: lembremo-nos, por exemplo, da interpretação feita por Freud a respeito do Homem dos ratos. Era exato que ele estava morto, mas, ainda assim, isso não era verdade para o sujeito, que ainda o tratava como se ele estivesse vivo. O exato, aí, se separa da verdade, o que levou JAM a afirmar que nenhuma psicanálise seria possível sem essa disjunção. Na psicanálise, privilegiamos o que é verdade para certos sujeitos, sem prestar atenção à exatidão dos fatos. Note-se que essa disjunção, que tem toda sua pertinência no campo analítico, se encontra também nas fake news, que espalham verdades sem levar em conta a precisão dos fatos. Como já se pontuou diversas vezes, a tecnologia acelerou enormemente esse processo com a criação da Internet e de meios como os telefones celulares e a tecnologia 2.0, os quais, de certa forma, fazem com que qualquer um possa criar informação através da difusão de imagens na web e nas redes sociais. Broadcast yourself, é o subtítulo do YouTube: coloque-se em linha, um lema que nomeia bem essa nova possibilidade que a tecnologia permite. Conhecemos bem tudo isso. Lyotard havia antecipado de maneira formidável tudo isso ao afirmar que “as funções de regulação e, assim, de reprodução de imagens são e serão cada vez mais retiradas dos administradores e confiadas, em primeiro lugar, aos próprios cidadãos, et, em seguida, aos autômatos”[2]. É aí que estamos! Hoje em dia, já falamos de inteligências artificiais que são capazes de escrever artigos jornalísticos se lhes forem dados dois ou três elementos presentes em uma notícia, por exemplo: um homicídio, possíveis motivos, suspeitas sobre o assassino.
O que nos ensinam esses fatos sociais a respeito da relação entre a verdade e os fatos? E, por sua vez, como a psicanálise pode, através da distinção que ela faz entre verdade, mentira, besteira e real, subverter ou explicar esses fenômenos sociais? Primeiramente, podemos ver que, como indica Lyotard, a tecnologia nos permite alterar o próprio status do saber, da informação e do conhecimento a partir da alteração da relação entre os fatos e a linguagem. Já faz um bom tempo, pelo menos desde Wittgenstein, que os lógicos se deram conta de que fatos são, antes de mais nada, fatos de linguagem, e que, em função da maneira como falamos dos fatos, podemos criar mundos distintos. Isso não significa que os fatos não existam por si só; um atentado, por exemplo, é um fato real. Mas a forma como a mídia se refere aos fatos exerce uma influência decisiva sobre sua recriação. Por exemplo, quando dizemos que um certo indivíduo foi visto exatamente antes no local do crime, ou quando afirmamos que o indivíduo em questão possuía tal ou tal características. Isso não deve nos chocar, já que o que se encontra no centro das experiência de uma análise é, sem dúvida, o fato de que trabalhamos com a palavra do sujeito, trabalhamos a partir daquilo que ele diz, independentemente de irmos verificar se o que ele diz é verdade ou não. Os fatos, em uma cura analítica, são, antes de mais nada, fatos de linguagem, ainda que eles possam ser traumáticos para o sujeito e ainda que eles continuem a incidir, por vezes de forma nefasta, sobre sua vida atual. O interesse de uma psicanálise não está em sua possibilidade de mudar o futuro do sujeito, mas sobretudo seu passado. Tal possibilidade existe graças ao fato de se poder narrar os eventos passados, que foram realmente vividos e que continuam a exercer efeitos duráveis ao longo do tempo, de novas maneiras, de forma a aliviar seu peso. Esse elemento me parece fundamental e vale por si mesmo no sentido de poder rejeitar ao menos uma parte dos eventos que marcaram a vida de um sujeito, produzindo assim um efeito de separação com relação aos eventos traumáticos vividos. Por vezes, através da narrativa que o sujeito cria em torno dos eventos, uma verdade bastante distante dos fatos pode ser criada e, assim, pode-se retirar algo da vivacidade de alguns eventos ou de certos detalhes desses eventos que se encontravam no centro das memórias traumáticas. Dessa forma, pode-se aliviar o peso que certos fatos exercem, por vezes, mesmo décadas após terem sido vividos. Isso nos mostra de que maneira a primeira de todas as talking-cures, que é a análise, ao privilegiar a relação entre o sujeito e a palavra, pode tratar fatos, ainda que eles sejam distantes do ponto de vista temporal; isso pode ser feito quando se revela o caráter fake dos eventos em questão, ou por vezes quando se retifica certos elementos de forma a permitir uma outra visão das coisas. A dimensão do saber articulado que pressupõe a experiência de palavra de uma análise tem, dessa maneira, uma incidência sobre a verdade (ou as verdades) de um sujeito, podendo alterá-las. Mas, para isso, deve-se passar pela articulação desse saber que se produz em uma cura analítica. Assim, essas verdades não são absolutas, ainda que por vezes elas assumam esse caráter para o sujeito. São verdades que muitas vezes são estruturadas a partir de equívocos, de acidentes de linguagem, de “jogos de linguagem” – como dizia Wittgenstein – que a interpretação analítica é capaz de introduzir. O exemplo máximo me parece ser o sujeito fetichista evocado por Freud, que buscava um “brilho sobre o nariz” como objeto que condicionava seu gozo, tornando-se um fetiche. Esse fetiche se constituiu na passagem do inglês “a glance at the nose” ao alemão “eine Glanz auf der Nase”, quando o analisando mudou de país e de língua. Foi possível assim reconstruir, em análise, o equívoco que havia originado sua pequena perversão. Uma escorregadela linguística, um equívoco constitui a origem da formação de uma perversão ou de um sintoma. A interpretação analítica, na medida em que ela segue esse mesmo caminho do equívoco da linguagem, pode tratar essas questões. Hoje em dia, vivendo entre línguas, isto é, entre diversas línguas, tal como o Finnegans’ Wake de James Joyce, podemos constatar que os equívocos se fundem entre si. O importante aqui é que esses equívocos nos colocam diante do fato que a verdade só pode ser meio dita, que a verdade é pas-toute e que ela pode ser abordada, justamente, a partir desses acidentes de linguagem introduzidos pela psicanálise. Essa dupla face da verdade e da mentira, que associamos há pouco com a fita de Moebius, se mostra assim similar ao plano da linguagem, o único plano no qual os objetos tendem a escorregar, a se distorcer. Assim, verdade e mentira equivalem uma à outra, ambas se inscrevendo no plano da palavra e se distorcendo em função de seu caráter. Lacan chega ao ponto de fazer, em seu seminário XX, Encore, uma verdadeira “ode à besteira”, a besteira que é própria da linguagem, no sentido em que ela permite o acesso à verdade ou as verdades presentes na linguagem.
Uma pequena digressão no campo da Lógica nos ajudará a entender melhor o estatuto da verdade. Nossa ideia comum é que o estatuto daquilo que parece ser verdadeiro, mas que, na realidade, não o é, não deveria tolerar a condição de suficiência material do grande lógico Tarski, que se interessou por essas questões, exige para afirmar que determinada proposição é verdadeira.
A condição de suficiência material de Tarski, também conhecida pelo nome Convenção I, estima que toda teoria da verdade, para ser considerada viável, deve comportar, para cada frase “P”, uma frase com a seguinte forma (chamada “forma T”):
- “P” é verdadeiro se e somente se P.
Por exemplo,
- “A neve é branca” é verdadeiro se e somente se a neve é branca.
É importante observar que Tarski, em um primeiro momento, aplicou essa teoria somente às linguagens formais. Ele apresentou uma série de argumentos para não estender sua teoria às linguagens naturais. Isso não impediu Davidson de desenvolver uma abordagem das teorias do sentido com relação às linguagens naturais tendo como base a teoria de Tarski, tratando a “verdade” como uma premissa, ao invés de tratá-la como um conceito definido.
Tarski desenvolveu essa teoria no intuito de promover uma definição indutiva da verdade, da seguinte forma:
Para uma linguagem L contendo os elementos – (“não”), ^ (“e”), v (“ou”), ∀ (“para todo”) e ∃ (“existe”), a definição indutiva da verdade segundo Tarski seria assim:
- “A” é verdadeiro se e somente se A.
- “-A” é verdadeiro se e somente se “A” não é verdadeiro.
- “A^B” é verdadeiro se e somente se A e B.
- “AvB” é verdadeiro se e somente se A ou B ou (A e B).
- “∀x(Fx)” é verdadeiro se e somente se todo objeto x satisfaça a função proposicional F.
- “∃x(Fx)” é verdadeiro se e somente se existe um objeto x satisfaça a função proposicional F.
As fake news se baseiam sobre o fato de que elas devem ser demonstradas ou verificadas. Em nossa civilização, não acreditamos mais no que é enunciado pelas mídias. Incluímos um ponto de inconsistência, como nos teoremas de Gödel, em qualquer enunciado que parece descrever a realidade sob a forma de verdade. Pior ainda: a própria Ciência porta muitas vezes esse princípio de inconsistência, o que levou muitos médicos, na França, por exemplo, a relutar a se vacinar, alegando não poderem avaliar os eventuais efeitos das vacinas anti-Covid. Isso sem falar do complotismo, posição de desconfiança sistemática com relação a todo e qualquer enunciado da sociedade, supondo a existência de relações ocultas e, de forma similar à postura de um pré-determinista, encontrando um sentido onde, justamente, não há sentido – fazendo surgir, assim, um Outro, geralmente mal-intencionado.
Clínica
O problema é que, na psicanálise, todo enunciado verdadeiro está sujeito a demonstrações tendo por referência a questão do gozo. Dessa forma, enunciados verdadeiros são “furados” pela inconsistência, na medida em que nada do que o sujeito diz em análise pode ser verificado, a não ser à luz de sua estrutura de gozo. A palavra do analisando pode comportar enunciados verdadeiros e demonstrados lado-a-lado com outros não-demonstráveis. Seja como for, tais enunciados só poderão ser verificados com relação ao conjunto de seus dizeres (o que, na Matemática, se denomina um teorema) e com relação a suas modalidades de gozo. Eles não necessariamente poderão ser verificados em função da relação entre diferentes proposições. Inconsistência e não-demonstrabilidade são, assim, características dos dizeres dos analisandos. Não se deve verificar um “sim” ou um “não” em seu discurso, como dizia Freud em “Construções em psicanálise”, mas deve-se ter em vista o gozo enquanto elemento exterior ao discurso. É por conta disso que Lacan afirma, em seu seminário sobre a lógica da fantasia, que “a fantasia fundamental funciona como um axioma com relação aos dizeres do sujeito”.
É nesse âmbito que uma distinção entre o Ser e a Existência se impõe, conforme argumenta Jacques-Alain Miller em seu curso “L’être et l’Un”. Trata-se de uma distinção entre, de um lado, o Ser como ser da palavra, o ser que a palavra produz e que Lacan promoveu ao termo de parlêtre. Notemos que Lacan, através desse termo, subverte aquilo que ele mesmo afirmara em seus primeiros seminários, que a palavra introduz uma “falta-a-ser” (manque à être), na medida em que a metáfora e a metonímia impedem todo ser de se constituir como tal, sendo que, no final das contas, “a palavra é a morte da Coisa” na linguagem. Uma vez que falamos, o ser se desfaz. Mas o último Lacan – através da substituição do sujeito do inconsciente pelo parlêtre (presente em sua conferência “Joyce le sinthome” e nos Outros Escritos) – se propõe abordar o ser de forma positiva e de associá-lo à palavra, enquanto que, anteriormente, ele o abordava de forma negativa, como aquilo que é negado pela ação da palavra. A palavra implica, nesse último momento de seu ensinamento, um “ganho de ser”, ao passo em que, anteriormente, ela implicava uma “perda de ser”.
Mas se o ser se associa à palavra, então, há algo que existe antes e fora dela, ou, empregando a terminologia de Martin Heidegger, ex-siste, isto é, que é exterior em relação a ela. Trata-se do campo do gozo, que, justamente, não se reduz à palavra e não se deixa tomar pela palavra. A ex-sistência se apresenta assim como exterior em relação ao domínio do significante e de todas as ficções que ele é capaz de articular. Como vimos, Lacan afirmava que “a verdade tem uma estrutura de ficção”. Assim, a verdade ou as verdades são na medida em que se articulam ao significante; o real do gozo, entretanto, ex-siste em relação a ele.
Essa distinção está ligada à abordagem analítica da verdade, como aquilo que se associa às ficções que o significante articula e ao que deve ser construído, utilizando a terminologia de Freud, isto é, aquilo que é da ordem do gozo e que, pelo fato de ele ex-istir em relação ao significante, deve ser adicionado pelo analista, visto que não pode se articular no discurso do próprio analisando.
Epistemologia: do gozo do sentido aos arranjos possíveis
Interessei-me especialmente pelo subtítulo “do gozo do sentido aos arranjos possíveis”, pois esse subtítulo me parece apontar para o destino do gozo na análise, já desconectado do sentido que o analisando conferia àquilo que fazia consistir seus sintomas. No sentido do sens-jouit ou ainda do j’ouis sens (jogos de palavras com a palavra francesa para gozo, jouissance), isso diz respeito à experiência sexuada do parlêtre na qual se pode fazer do Nome-de-Pai o significante principal. A análise permite ao sujeito confrontar-se com o objeto com que ele tem de lidar em sua fantasia fundamental e, a partir daí, reformular sua maneira de estar no mundo e de significar sua existência. O Nome-do-Pai, a Lei paterna, surge a partir daí como um semblante que permitiria dar sentido ao conjunto da experiência do parlêtre. Pode-se perceber isso, por exemplo, quando um analisando se dá conta de que seus próprios gestos relativos ao dinheiro (como o fato de não guardar nenhuma quantia, nenhuma nota consigo antes de deixar um país cuja moeda seja diferente, antes de retornar ao seu próprio país) se associam ao fato de que era seu pai que o dizia para fazê-lo. Ou então um outro analisando que escolhia seus destinos de férias em função das localidades que seu pai dizia que ele precisava visitar. O campo das possibilidades se amplia quando o sujeito neurótico se confronta com o lugar central que a Lei paterna ocupava para ele e quando ele percebe que existe uma vida para além desse campo estruturado por esse significante principal. É como o filósofo que sai da caverna na República de Platão, e que, assim, de repente, se dá conta do quanto sua realidade era limitada pelas sombras que ele via projetadas na parede. A queda do semblante paterno equivale a um aumento do campo da realidade, que passa a incluir, doravante, aquilo a que o sujeito neurótico renunciara durante muito tempo, isto é, seu desejo. Mas essa operação passa principalmente pela linguagem, para poder reconhecer os significantes no seu discurso que são alienados e alienantes, pois eles vêm do Outro.
Atravessar o fantasma fundamental implica isolar, no seu próprio caso, o objeto que organizava o gozo dos seus sintomas. O “sens-joui” (“sentido goza”) se sustentava sobre essa modalidade privilegiada do objeto, objeto que introduz, logo, uma ausência de sentido. Trata-se de um processo no qual o sentido que o sujeito neurótico obtinha através dos seus sintomas perde algo de seu volume. Isso implica, precisamente, a introdução de um furo na significação – o que não significa necessariamente que se deva deixá-la completamente, mas sim perfurá-la introduzindo um ponto que escapa ao sentido. Esse ponto sem sentido representado pelo objeto a permite a compreensão de uma série de fenômenos que não se reduzem ao significante, nem tampouco – diga-se de passagem – à razão, para os sujeitos mais cartesianos. Essa operação descompleta o saber e, consequentemente, coloca em xeque seu poder de entender aquilo que resiste à simbolização.
Se o sentido possibilita a condensação do gozo, o gozo precisa encontrar um destino: é esse o sentido da aplicação das “bricolagens possíveis” aos quais o subtítulo faz referência. “Bricolagens”, pois o parlêtre deverá dar continuidade aos arranjos com o gozo, as quais, de agora em diante, não se autorizam mais tendo por base o Nome-do-Pai. O sujeito ainda pode realizá-lo em nome do Nome-do-Pai, mas, nesse caso, ele o fará sabendo disso. Trata-se, assim, de situar a “bricolagem” claramente na perspectiva do sinthoma, pois o sinthoma implica sempre uma bricolagem possível com o resto de gozo presente no sintoma que a análise não é capaz de reduzir ainda mais. O nó borromeano amarra o resto de gozo irredutível que se deduz do sintoma. E é nisso que ele constitui uma “bricolagem”, na medida em que implica um arranjo sempre singular passando por fora ou ao lado do Nome-do-Pai, que, anteriormente, permitia o nó dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário.
No que diz respeito à bricolagem, diremos, como Claude Lévi-Strauss, que ele atinge todas as suas letras de nobreza. Lévi-Strauss o afirma, especialmente, em Pensamento selvagem. Citarei Lévi-Strauss:
O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas; porém, ao contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores. O conjunto de meios do bricoleur não é, portanto, definível por um projeto (o que suporia, aliás, como com o engenheiro, a existência tanto de conjuntos instrumentais quanto de tipos de projeto, pelo menos em teoria); ele se define apenas por sua instrumentalidade e, para empregar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos são recolhidos ou conservados em função do princípio de que “isso sempre pode servir”. Tais elementos são, portanto, semiparticularizados: suficientemente para que o bricoleur não tenha necessidade do equipamento e do saber de todos os elementos do corpus, mas não o bastante para que cada elemento se restrinja a um emprego exato e determinado. Cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operações, porém, utilizáveis em função de quaisquer operações dentro de um tipo[3].
Detenhamo-nos, a partir dessa longa citação, sobre alguns pontos que me parecem muito importantes: “seu universo instrumental [da bricolagem] é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos”, ou seja, quer dizer que ele não procede por meios técnicos especialmente elaborados para a situação em questão, a não ser que seja um conjunto fechado de ferramentas e materiais escolhidos para a operação, pegando os “meios da borda”, como, no caso da análise, aqueles que pertenciam ao sintoma. Isso fica ainda mais claro na seguinte afirmação: “a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores”. Não há uma técnica prévia, nem um projeto que preceda a invenção, mas somente um resultado “contingente” de uma série de ocasiões, que permitem um enriquecimento a partir dos resíduos das construções ou das destruições anteriores; ou seja, no nosso campo, do sintoma.
Por fim, “[a bricolagem] se define apenas por sua instrumentalidade e, para empregar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos são recolhidos ou conservados em função do princípio de que ‘isso sempre pode servir’”. Trata-se da característica instrumental do sinthoma, que aparece aqui como arranjo ou invenção. Ele se constrói a partir das “peças soltas” que permanecem no final de uma análise, ou, como dizia Lévi-Strauss: “Cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operações, porém, utilizáveis em função de quaisquer operações dentro de um tipo”. As possibilidades de invenções e arranjos são determinadas por esses elementos que representam “um conjunto de relações […] utilizáveis em função de quaisquer operações”: creio que dificilmente podemos definir melhor a característica instrumental e operatória do sinthoma que pela dimensão de savoir-faire que Lacan lhe confere.