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Exílio, saber e amor: um laço
Por Licene Garcia
O que me proponho a falar aqui com vocês hoje, é a partir dos ecos que ficaram da experiência de fazer parte da Conversação Preparatória para o X ENAPOL, sob a rubrica “O amor e o exílio”, com a coordenação de Maria Silvia Hanna e Maria Cecilia Ferretti.
Parto, assim, das perguntas que me colocaram e que ainda me colocam a trabalho no que diz respeito a temática do amor e o exílio, tomando como norte os textos de orientação das discussões em grupo: o último capítulo do seminário 20 “O rato no labirinto” e o ponto 3 do quarto capítulo do seminário 23 “Joyce e o enigma da raposa”, além de outros textos que trocamos no decorrer de cada encontro.
Para começar, precisamos situar que a partir dos anos 70, com as fórmulas da sexuação, há uma mudança no estatuto do amor e quem é o parceiro do sujeito. Lacan propõe que o amor e as parceiras já não são com Outro como pessoa ou como verdade. Já não se tratará mais do encontro entre o sujeito e o Outro, mas dos arranjos e desarranjos do falasser com o seu Outro. Ou seja, como o falasser responderá frente à sua condição estrutural de solidão, enquanto traço de exílio da relação sexual.
Sobre isso, Lacan diz: “não há outra coisa senão encontro, o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço do seu exílio não como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual.”[1]
A noção de parceiro-sintoma traz como perspectiva que no que diz respeito ao encontro amoroso, sem incluir a diferença na relação, não há furo, não há relação, não há encontro, não há amor. Cito Lacan: “Há relação somente na medida em que há sintoma, isto é, em que o Outro sexo é suportado pelo sintoma.”[2]. A condição do encontro então, é que não haja equivalência entre os sexos. Isso quer dizer que em um encontro a relação com o parceiro amoroso nunca é direta, ela será sempre mediada pelo sintoma, o verdadeiro parceiro do falasser.
Cito Miller em “O osso de uma análise”, “o parlêtre, como ser sexuado, faz parceria não no nível do significante puro, mas no nível do gozo, e essa ligação é sempre sintomática”[3].
Lacan no Seminário 20, ao falar sobre o amor aponta: “Todo amor se baseia em uma certa relação entre dois saberes inconscientes[4]”. O que isso quer dizer? De que saber se trata?
O saber inconsciente de que se trata para o ser falante, é um saber articulado, um saber-fazer com lalíngua, mas como acrescenta Pierre Naveau, “daquilo que não se consegue não fazer com ela.”[5]
Assim, lalíngua é o que institui o Um sozinho, sem o Outro. É um gozo anterior ao Outro, e será a partir dele que o sujeito se constituirá, em um segundo tempo lógico, pelo banho de linguagem que vem do campo do Outro.
Cito Lacan: “Quem fala só tem a ver com a solidão […] essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever, mas ela é mesmo o que se escreve por excelência, pois ela é o que, de uma ruptura do ser, deixa traço.”[6]
Traço de solidão, efeito do encontro traumático da língua com o corpo que produz acontecimento de corpo, faz marca na carne. Todo ser falante se constitui desse troumatisme, e precisará se confrontar com o desafio de encontrar uma solução para esse vazio constituinte que produz como marca, essa dimensão opaca e inominável chamada gozo.
Assim, torna-se possível dizer que o ser falante só conhece a solidão do Um. De acordo com Pierre Naveau “no momento do encontro entre dois corpos, Um e Um fazem Dois, no sentido em que isso faz um Um sozinho, separado de um outro, Um sozinho”[7]. O que há então, é o encontro de Uns sozinhos.
Isso significa dizer então, que o Outro do falasser é parceiro do gozo, parceiro-sintoma, parceiro daquilo que no encontro se escreve entre dois Uns sozinhos.
Dito de outro modo, entre o Um e o Outro sexo, não há relação sexual, na medida em que o que há é um furo. Furo que sustentará a diferença entre os sexos.
Em RSI, Lacan dirá: “o amor nada tem a ver com a relação sexual”[8]. Assim, serão com as marcas, com os traços deixados por esse ponto de exílio, que os encontros amorosos serão feitos contingencialmente.
Exílio, diz respeito ao que não se escreve, é o impossível de nomear e partilhar, é lugar de gozo, é habitar o corpo próprio, é o que toca o feminino em cada ser falante. Nas palavras de Marie-Hélène Brousse: “exílio é um nome dado à nossa relação com a linguagem e com lalíngua.”[9]
Com isso, abre-se a pergunta: qual seria o lugar para o amor quando pensado a partir de sua relação com o exílio?
Sérgio de Mattos diz que se a cifra do amor é sempre 2, assim “o que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor. O amor é o que permite fazer algum laço entre o um que existe, a não relação e o Outro.”[10]
O saber de que se trata, e que Lacan chama de “o ato de amor”, é quando o sujeito consente em substituir o grande A pelo pequeno a. Ou seja, quando o sujeito pode consentir com a inconsistência do grande A simbólico e pode tomar o pequeno a, enquanto objeto causa de desejo.
O saber que se inclui aqui, é o de consentir com a alteridade que nos habita, consentir com o feminino, com o traço de exílio que nos marca como falantes. E o amor, aparecerá como aquilo que nos permite enlaçar de modo sinthomático esse Um sozinho.
Nas palavras de Lacan o sinthoma “é precisamente o sexo ao qual eu não pertenço”. O Outro sexo é isso que sempre restará fora, Outro, alter, hétero. Assim, pode o amor, enquanto suplência, amarrar, de modo singular em cada um, aquilo que restará sempre como traço de exílio da relação sexual.
Só há encontro no acaso, visto que no instante do encontro, no real algo se encontra, algo sobre o qual há um saber, um saber que não fala, mas se experimenta, um saber que se articula, se liga e se escreve em cada um. Ainda que a relação sexual não exista, no instante do encontro, algo dessa inexistência, desse furo no saber, passa pelos poros do equívoco, e produz acontecimento de corpo que testemunha o furo com o qual o saber está às voltas. E caberá a cada um, querer saber ou não o que aconteceu nesse encontro com o acaso. Isso é contingência, é o “para de não se escrever”. Há algo que se inscreve, no instante do encontro e que dá a ilusão de que algo do encontro se escreveu. Se a neurose reina, há um não querer saber sobre isso, na medida que se transforma isso que era contingente em necessário “não para de se escrever”. Esse é o ponto de suspensão do amor, e que marcará o destino do amor no instante do encontro, enquanto invenção de saber ou drama do amor.
Seguindo Pierre Naveau “o amor é uma ética fora do sexo”, na medida que no instante do encontro é preciso que o sujeito aceite que sua defesa frente ao feminino, frente ao infinito, seja perturbada, pois ela é o que o divide, faz furo, mas também o que abre o campo da surpresa.
Assim, pensar na frase: “Todo amor se baseia numa certa relação entre dois saberes inconscientes”, é apostar que, seguindo Brousse[11], o exílio é aquilo que feminiza, pois ao enfatizar o valor contingencial do amor, o que há é uma ligação entre o encontro e o escrito, uma vez que a contingência é aquilo que se encarna. Em outras palavras, o corpo é colocado em jogo fazendo com que essa relação entre dois saberes inconscientes seja ponto de apoio ao amor, assim, marca disso que cessa de não se escrever. Aqui, não se trata do encontro entre o sujeito e o Outro, mas dos arranjos do falasser com seu Outro.
Ama-se a coragem de enfrentar isso que em si acontece, sem nada saber e que não há palavras para dizer, mas que se experimenta.