#04 - SETEMBRO 2024
Estar à altura do acontecimento imprevisto
Flávia Cêra
EBP/AMP
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Em que tempo se dá a análise uma vez que, dizia Freud, o inconsciente é atemporal? Como operar para que não trabalhemos na dimensão da eternidade simbólica? O essencial, comenta Miller, “é estabelecer uma conexão entre a atemporalidade do inconsciente, quer dizer, entre o seu passado definitivo, a sua inscrição para sempre, e o presente do analisante, operando assim um reenvio da fala à escrita”[3]. Neste sentido, o inconsciente é uma leitura em aberto, um devir. Ele se produz na medida em que é lido, o inconsciente-repetição e é, ele mesmo, intempestivo quando irrompe em sua função de interpretação. Por isso, é importante a variação do tempo, o uso do corte para produzir um sujeito e extrair um mais-de-gozar[4]. A passagem do inconsciente-repetição ao inconsciente-interpretação se dá na inclusão do tempo e na escrita de uma barra. Por um lado uma barra no S, uma vez que a determinação supergóica é suspensa, e uma barra no A quando a indeterminação encontra a certeza do ato, do salto, e isola um significante, encontrando um núcleo ininterpretável, quando S1 não corresponde mais a S2 (S1//S2)[5]. Uma hipótese: estar à altura do acontecimento imprevisto solicita do analista estar à altura da interpretação do inconsciente[6]?
Quando se está determinado pelo discurso do mestre, quando “uma marca distinta tem o poder de absorver o sujeito”[7], fazendo coincidir sem resto, o discurso analítico retoma, pelo dizer, a indeterminação do sujeito, cria uma margem em relação ao significante que o absorve, levando em conta a dimensão “opaca à intenção de dizer”[8] necessária para que “possa haver um dizer que se diz sem que a gente saiba quem o diz”, como afirmou Lacan[9]. Esta singular relação com a fala e o discurso muda a relação com o dizer de quem atravessa uma experiência analítica e incide no corpo e no laço. Ou seja, a política da psicanálise, a de fazer existir o inconsciente, pretende uma mutação do sujeito, uma mutação do modo de gozo. Fazer do inconsciente um acontecimento é trabalho do analista. Como fazê-lo?
A experiência analítica, a partir do seu discurso, recolhe, nos ditos, a gramática singular de cada um, as formas com que o corpo foi tomado pelo discurso, para ser lida. É importante, neste sentido, perguntar qual a relação com o dizer hoje?[10] Como se conta um acontecimento ou uma história? Como andam os impasses em relação à interpretação analítica? Podemos arriscar que há uma tendência, que se amplificou com as múltiplas plataformas de redes sociais, de fazer coincidir dizer e dito sem equívoco, uma identidade entre eles que supõe uma exatidão do sentido. Mas a comunicação pretendida logo encontra-se com o mal-entendido que encontra um vertiginoso destino de esclarecimento, lacração e cancelamentos prevalecendo um inquestionável do dito (como fato). Quando algo perturba a realidade performativa do Eu, não raro, em vez do corpo ser afetado pela angústia, o que afeta é o ódio. Esse é um dos desafios políticos da nossa época que também introduz uma dimensão temporal que é a da urgência. Neste sentido, as relações entre corpo e tempo acontecem nas disrupções de gozo que se produzem no encontro com um real. Isso que acontece no corpo está fora do discurso ou aprisionado por ele? Como distinguir esses pontos e no que eles orientam o trabalho na clínica? Lacan deu a pista que o analista faz par com a urgência. Como instalar um tempo em que o dizer tenha um lugar para que se possa dar voltas em torno dos ditos (le tour du dits)[11]?
Em 1968, no Seminário sobre o ato analítico, Lacan já o apresentava como um dizer que visa uma transformação, uma subversão, uma mutação no sujeito que toca sua posição em relação à pulsão, este eco do dizer no corpo. O ato analítico se orienta, então, por um dizer que participa da escrita do gozo. Por isso, o tempo da sessão não será cronológico, e sim tempo libidinal, que põe em jogo o corpo e a linguagem, levando em conta a contingência, o tempo do instante para modificar o campo dos possíveis. Ato e corte, em uma sessão, bem como suas relações com o tempo, se apresentam como a presença de um dizer atento ao imprevisto, aos “escândalos da enunciação”, às formações do inconsciente, um dizer onde a vida vibra. Imprevisto que o analista agarra porque algo diferente do aprisionamento mortificante aparece e é importante fazer com que isso se insinue no sintoma[12], que ressoe no corpo na aposta de que na fulguração desse instante, algo que não cessa de não se escrever, se escreva.
Como cada analista pode estar à altura do acontecimento imprevisto? Ou ainda, como pôde fazer o inconsciente existir? Que usos dos lapsos, do corte, que manejos do tempo permitiram que algo do imprevisto ganhasse a dimensão do dizer como acontecimento? Nosso convite é para formalizar e transmitir esses instantes fugidios, o que esses espaços de lapsos e seus usos nos ensinam.