#05 - Outubro 2022
Escuta, ressonância, leitura
Eneida Medeiros Santos
Membro EBP/AMP
No Discurso de Roma de 1953[i], Lacan faz críticas contundentes a certos usos, na condução de uma análise, das funções da fala. O psicanalista pode tornar-se mestre/senhor de tudo o que se passa nessa experiência se ignora que o valor da experiência da fala vai muito além de que qualquer efeito de intenção do sujeito, se ignora que o sujeito é mais falado do que falante. Ser falado assemelha-se muito com a alienação na loucura, o que levou Lacan, tomando Pascal de empréstimo, a nos dizer: “os homens são tão necessariamente loucos que seria enlouquecer por uma outra forma de loucura não ser louco”[ii]. Assim, a primeira coisa que cai, quando se inicia uma análise, é a crença de que “eu falo”, irrompendo daí o sou falado.
Na Direção do Tratamento[iii] de 1958, Lacan aborda a fala como condição da escuta analítica. É a fala que guia o tratamento e que atesta os seus poderes. Na análise, o sujeito é livre para se experimentar nisso, liberdade que ele pouco tolera e a presença do analista só se faz notar mais adiante, quando surge o momento em que esse mesmo sujeito se cala.
Nesses textos iniciais do ensino de Lacan, encontramos elos com seus textos finais, quando, guiado por Joyce, ele vai falar das falas impostas. “Como é que todos nós não sentimos que as falas das quais dependemos são, de algum modo, impostas?”[iv]. A loucura ultrapassa em muito a ideia de normalidade e “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita […]”[v].
É Joyce quem vai lhe mostrar não se tratar de se livrar do parasitismo da fala, ao contrário, trata-se de fazê-la ressoar, de captar como faz Joyce em Um retrato do artista quando jovem, em Ulysses e em Finnegans Wake. Essa fala, ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita, impondo uma tal decomposição à linguagem destruindo sua identidade fonatória[vi].
Desse modo, a experiência de uma análise atesta que a fala sempre esbarra em um limite. Há algo inoperante nela, uma fratura mostrando que entramos no território da escrita. Um equívoco, a troca de uma letra, a forma de rébus dos sonhos, remetem-nos à escrita. Para poder captá-los percorremos o caminho que vai da escuta da fala à leitura da letra. Cada vez que se recorta, que se pontua o detalhe mais ínfimo de uma fala, com valor de significante, produz-se uma escritura e ela se oferece, então, à leitura.
A escuta analítica é o que vai sustentar a interpretação do analista. Éric Laurent destaca três regimes de interpretação: aquela que aponta ao sentido, ou à multiplicidade de sentidos, sem estar aberto à dimensão de todos os sentidos; a interpretação apontando para o objeto a, que circula nas entrelinhas do sentido; e a interpretação que aponta para a ressonância, para algo que ressoa no espaço entre o sentido, o que ressoa no fora-do-sentido[vii].
Voltando ao Discurso de Roma, ao esmiuçar as relações da fala com a linguagem, Lacan destaca a importância da redundância para a psicanálise. Diz ele que as pesquisas das telecomunicações (as de sua época é claro, e o que diríamos hoje sobre os algoritmos de linguagem na internet?), o estudo das possibilidades de fazer diversas conversas viajarem por um único fio telefônico, constataram que uma parte importante do meio fonético é supérflua para que se realize a comunicação efetivamente buscada. Quer dizer, elimina-se o que se repete. Ao contrário, ele continua, a redundância, a insistência inútil e o excesso são aquilo que, precisamente na fala, fazem as vezes de ressonância. Escutar as ressonâncias da fala, aquilo que se repete desde o início, implica em captar os momentos fulgurantes da presença do real, momento em que a lógica do inconsciente se reduz à letra a ser lida.