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Escola: um refúgio inquietante!

Arte: Yayoi Kusama
Celia Winter

Um ditado popular diz que “em time que está ganhando não se mexe”. Pensar a Seção Sul como um time me agrada, pelo que evoca: pessoas com conhecimentos e habilidades diferentes, que buscam um fim comum. Concebendo como fim comum justamente uma Seção Sul, a proposta não poderia ser outra, que não a de dar continuidade ao trabalho decidido e orientado da Diretoria anterior e seguir colocando o corpo, estreitando os laços transferenciais, sustentados na concepção lacaniana do coletivo não-todo e da transferência de trabalho. Como proposto por Lacan, “na solidão de um sujeito que tem relação com uma causa para defender e promover. Avançar e se apresentar não como um sujeito que se propõe ele mesmo como Ideal, mas como um sujeito que tem relação com um Ideal, como os outros que convida a se reunir em sua Escola”[1].  Orientação que guiará nosso trabalho sustentado nos princípios do Campo Freudiano em concordância com a orientação da EBP e da AMP.  Lacan almejava que a Escola de Psicanálise, na dimensão mais específica de uma Seção, fosse um lugar de “refúgio contra o mal-estar da civilização”[2]. Essa concepção de Lacan, mais do que nunca, se revela indispensável e convoca a todos à responsabilidade de estar à altura desse refúgio, na vertente de “base de operação” contra tal mal-estar. O desejo de Lacan, por uma Escola de Psicanálise, foi além de Freud, além do Édipo, além da estrutura do “todo”, de um Pai que é a exceção. Na Escola Lacaniana “não há exceção, mas sim um conjunto, ou melhor, uma série de exceções, de solidões incomparáveis ​​entre si” e, como tal, a Escola é “não toda, no sentido de que é logicamente inconsistente, e se apresenta sob a forma de uma série na qual falta uma lei da formação”[3].

Nessa visada, entre outras, a atualidade do tema: formação do analista. Estar na universidade me proporciona circular entre jovens que nada querem saber da psicanálise, pois a consideram “ultrapassada” e os que se dizem fascinados por essa teoria, que lhes toca de uma forma inusitada. Entre esses, a pergunta mais comum é: como tornar-se psicanalista? Qual curso fazer?

Se a pergunta sobre qual curso fazer é, entre os psicanalistas, totalmente descabida, não é o que acontece entre aqueles que se deixam tocar pela primeira vez, ao ouvirem sobre a psicanálise e afirmarem que não entenderam quase nada, mas algo de um desejo de saber se colocou. Uma boa parte dos que se aproximam da psicanálise vem através da universidade. O primeiro passo transferencial é a passagem dessa transferência para a Escola. Escola, que para Lacan, passa a ser a garantia para que a psicanálise “[…] volte a ser o que nunca deixou de ser – um ato ainda por vir[4].

Nesses “tempos que correm”, o voto de Miller em relação à psicanálise e ao lugar que ocupa no Mundo, está mais do que nunca atual: “a ideia de ter peso, de penetrar e deixar uma marca, é o que quero para o pensamento de Lacan[5]. No contexto de uma predominância de práticas avaliativas e de vigilância que incidem nos diversos domínios da vida contemporânea, pensar a Escola, como refúgio, e a Psicanálise, como pulmão artificial, como propõe Lacan, nos convida como analistas a uma “tomada de posição”, orientados pela responsabilidade da relação singular com a psicanálise.  Do discurso do mestre antigo, ao discurso do mestre moderno, universitário e capitalista, o saber obtido pelo cálculo da utilidade e do valor passa a orientar as decisões políticas e individuais. Da batalha travada por Miller, em 1991, quando denuncia que não foi mais possível impedir a chegada da política de avaliação e da demolição sistemática do ensino da Psicanálise no Departamento de Paris VIII[6],  até os tempos atuais, é possível constatar o enunciado de Nietzsche – “o deserto cresce”. O discurso da ciência e o cognitivismo visando a homogeneização e o ideal de transparência, afiançado pelo saber extraído e decodificado pelos instrumentos de avaliação. A psicanálise recolhe os efeitos desse laço social contemporâneo, mas de forma distinta do discurso dominante, oferece outro destino ao íntimo, ao que do gozo não pode ser contabilizado e homogeneizado. Críticas como as de Natalia Pasternak são um exemplo dessa desertificação.

Minha aposta, juntamente com as colegas que compõem comigo a Diretoria, e as equipes, pelas quais nosso trabalho ganha mais capilaridade e sustentação, é de que o discurso analítico tem uma função ímpar para a abordagem e o enfrentamento ao mal-estar da civilização e, de forma diferente do discurso do mestre moderno, dá lugar ao que do sintoma é opaco, ao que do gozo não se pode contabilizar ou significantizar. Daí a importância da nova política para a juventude, no seio da EBP e do debate constante sobre a Formação do Analista, mantendo aberto aos jovens que se aproximam esse espaço de acolhida. Na contramão do discurso utilitário e de seu ideal de transparência, a psicanálise se orienta pelo saber que não está explicitado e que não é calculável, mas que é inconsciente e surge sob transferência. O saber do inconsciente não é transparente, e a relação analítica é impossível de ser contratualizada, a indicação de Miller, “Nos Tempos que Correm” e na “Terra desertificada”, é “não se deixar hipnotizar” pois o que se espera de nós não é o diagnóstico, mas a ação, a ação lacaniana no polo oposto ao discurso da quantificação.


Referências
Lacan, J. Ato de fundação (1964). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Miller, J.-A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In: Opção lacaniana on-line. No. 21
Miller, J.A. Introdução de Scilicet. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Miller, Jacques-Alain. El Otro de la vigilancia. In: Todo el mundo es loco. 1ª Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2020.
[1] Miller, J.-A., Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In: Opção lacaniana on-line. No. 21, 2016
[2] Lacan, J. Ato de fundação (1964). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 244.
[3] Miller, J.-A., “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”. In: Opção Lacaniana online, No. 21, 2016.
[4] Miller, J.A Introdução de Scilicet. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 293.
[5] Miller, Jacques-Alain. El Otro de la vigilancia. In: Todo el mundo es loco. 1ª Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 87
[6] Idem, p. 95
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