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Escansão

Juan Cruz Galigniana
Participante da Comissão de Referências Bibliográficas

“O psicanalista só consegue acertar o alvo se ele estiver à altura da interpretação operada pelo inconsciente, já estruturado como linguagem. Ainda é preciso não reduzir essa linguagem à concepção que a linguística pode ter dela, de uma ligação entre significante e significado. É preciso dar todo o seu lugar à barra que separa as duas dimensões e permite a topologia da poética. A função poética revela que a linguagem não é significado, e evidencia a matéria que, no som, excede o sentido” (Éric Laurent)[1]

Em um tempo em que as modalidades de escuta se multiplicam e intensificam as tentativas de constranger o discurso psicanalítico a uma lógica toda e à institucionalização do saber, Laurent aborda as singularidades atuais da escuta psicanalítica. Ele delineia um pouco da trajetória percorrida pela noção de interpretação do primeiro ao último ensino, da interpretação tradução à interpretação assemântica e o escrito.

Sabemos que já antes do último ensino, Lacan vai além do ternário edipiano, substituindo-o pelo ternário do Real, do Simbólico e do Imaginário. Mas a operação deste novo ternário e, sobretudo, o estatuto do real mudam no transcorrer de seu ensino: de um real que se confunde com o sentido a “um real que se decanta ao ser excluído do sentido”[2]. Nesta passagem que vai da satisfação semântica à ressonância do corpo, do sujeito ao falasser, nos encontramos com esse novo ternário não sem um quarto elemento, uma vez que o sinthoma entra na concepção do nó borromeano como “o laço enigmático entre imaginário, simbólico e real ou supondo a ex-sistência do sintoma”[3].

Mas em que consiste esse “dar todo lugar à barra”? É possível pensar que a operação com essa barra seria algo do que muda ao longo do ensino lacaniano? Talvez possamos entender que, em um primeiro momento, a interpretação se orientaria por certa permeabilidade da barra, através da qual as cadeias significantes podem realizar enganchamentos com o campo do significado e produzir efeitos de saber e de sentido. Já no último ensino, certa impermeabilidade tomaria conta dela, estabelecendo uma separação radical entre significante e significado. Assim, ganharia a cena o esforço poético de se ler e de se fazer soar, pelo dizer e não pela fala, as ressonâncias do que estava escrito, as maneiras em que a língua incide sobre o corpo.

Veio-me à lembrança a palavra tessitura, adotada do italiano pela língua portuguesa. Essa origem dá lugar à curiosa grafia que marca o corpo da palavra com “ss” e não com a letra “c”.  Etimologicamente, tessitura refere-se à contextura de um tecido ou de uma obra literária. Mas também se utiliza no âmbito musical para definir o intervalo de notas entre as quais alguém pode cantar sem forçar demasiadamente a voz. Refere-se também à série de notas que se repetem dando estrutura à composição musical. Quem sabe a escuta analítica possa ser também pensada como o ato de se ler a tessitura da voz, dos sons, quando desta escapa um fiapo, uma equi(e)vocação, algo que pode nos remeter tanto à trama significante do que se fala, quanto às diversas diz-mensões da letra. Restaria como questão, para acertar o alvo, o tempo, o momento, a escolha da interpretação…


[1] LAURENT, É. “A interpretação: da escuta ao escrito”, Correio 87, São Paulo, EBP, abril de 2022, p. 63.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthome, 1975-1976, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2007, p. 62.
[3] Ibidem, p. 21.
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