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Entre posições e semblantes: confusões e infamiliaridades

Juliana Rego Silva[1]

Não existe Outro do Outro,

não existe a verdade sobre a verdade.

(Jacques Lacan)

Em 17 de novembro de 2019 o filósofo Paul B. Preciado realizou uma intervenção em sessão plenária na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana cujo tema foi “Mulheres em Psicanálise”. Seria simples e demasiado ingênuo interpretar os ecos dessa participação como “bom ou ruim”, ser “a favor” ou “contra”. A complexidade em questão se dá pela variedade de mal entendidos sustentados como certezas ilimitadas que colocam, a cada um de nós, analistas, a responsabilidade da escolha teórica, clínica e política do que fazer com isso. Ao ouvinte desavisado, valeria o esforço de retornar à intervenção com muita clareza sobre nossas bases teóricas, esclarecendo assim, que a problemática da sexuação na psicanálise não é essencialista já desde Freud, ou seja, compreendemos que a sexualidade humana não se restringe ao sexo anatômico, tampouco ao gênero designado civilmente. Essa constatação, que produz esvaziamento em algumas das críticas de Preciado, não anula a inquietação de suas outras provocações epistêmicas.

No início de sua fala Preciado faz analogia ao conto Relatório para a Academia, de Franz Kafka. Vejamos: “Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de científicos, me dirijo hoje a vocês, acadêmicos de psicanálise, desde minha jaula de homem transexual”[2].

No conto, o personagem Pedro Vermelho é um macaco que aprendeu a se comportar como um ser humano e apresenta para a Academia a história de como ele conseguiu sua transformação. O macaco se dirige às autoridades científicas a partir de uma jaula – uma metáfora para a própria subjetividade humana. Dentre as coisas que se pode ouvir ou interpretar, escolho pensar que quando Preciado faz uso dessa metáfora para se identificar e se dirigir aos psicanalistas, há aí uma oportunidade para revisitar nossos fundamentos clínicos. De modo preliminar podemos dizer que, desde o Seminário 17 – o avesso da psicanálise, sabemos que o discurso da psicanálise é substancialmente diferente do discurso universitário e que o agente, no discurso do analista, é o desejo inconsciente, um questionamento dos significantes mestres. Ainda que possamos entender a jaula como o próprio campo da subjetividade, não fica claro se a metáfora poderia caber para se pensar o corpo, o semblante ou o discurso.

Em geral se descobre, no decorrer de uma análise, como pode ser tentador ocupar essa posição de supor um Outro não enjaulado pelo corpo, pelo semblante ou pelo discurso. Um Outro que pudesse gozar de uma liberdade em termos do saber fazer com o sexual e que pudesse viver, sem amarras e aprisionamento, a construção livre de um discurso que não fosse semblante. Trago aqui esse seminário, o 18, pois é nele que Lacan se interroga sobre os limites do dito, sobre a articulação entre saber e verdade, escrito e linguagem, interrogando, de saída, se haveria um discurso que não fosse semblante. Ele sugere, ainda, que se há em Freud algo de revolucionário, foi na medida em que ele pôs em primeiro plano uma função, assim como Marx, de considerar um certo número de fatos como sintomas. Lacan diz: a dimensão do sintoma é que isso fala. Fala inclusive com os que não sabem ouvir. E não diz tudo, nem mesmo aos que o sabem[3]. Quão sintomático de nossa época pode ter sido o convite à Preciado para tal jornada, o tom e as temáticas de sua intervenção e os efeitos decorrentes dela na comunidade analítica?

Estaríamos certamente dessintonizados da subjetividade de nossa época se nos omitirmos de pensar que há aí também um esclarecimento político necessário: cada “enjaulamento” é certamente vivido de modo radicalmente diferente. Ou seja, é certo que há de existir algo insustentável em cada estrutura que forje um saber sobre a sexualidade humana e é esse insustentável que escapa justamente à qualquer estrutura[4].  Diante do aprisionamento dos discursos totalizantes como o da ciência, da religião ou do capitalismo, construímos invenções muito singulares de desprendimento e algumas possibilidades de inventar uma vida mais vivível que se afaste necessariamente de uma perspectiva naturalizante.

É por isso que quanto ao sexual e a montagem de um corpo próprio, precisamos pensar na necessidade constante de produzir invenções, de certo modo, sempre precárias. Essa invenção, como diz Marcus André Vieira[5], é um “saber se virar” e não um know-how. É nessa posição de precariedade que nos localizamos diante da sexual. Porém no campo político da vida, das relações estruturais de poder, o significante da precariedade se apresenta de uma outra forma.

Judith Butler, em Vida precária: os poderes do luto e da violência[6], nos pergunta: seríamos inevitavelmente todos humanos, certo? Mas por que nosso luto e comoção são direcionados para alguns? Quem conta como humano? Quem conta como uma vida vivível? Vida precária também é o livro em que a autora desenvolve um questionamento sobre por que ao invés de repensarmos nossas políticas de existência e o estado das coisas, no intuito de interrompermos as formas de violência, optamos, ao contrário, por reproduzir agressivamente a violência contra aqueles que chamamos de “outros” – os “bárbaros”, os nossos “inimigos”, os nossos “prisioneiros”. É aqui que a filósofa defende uma nova solidariedade contra a violência para enfrentar esta época marcada pelo conflito permanente.

Pensar nas possibilidades e potências de produzir uma invenção precária para tornar a vida mais vivível não é a mesma coisa do que pensar os processos de precarização de determinados modos de existência. São idéias distintas, não necessariamente conflitivas, mas que se situam em campos tão díspares quanto familiares. Fiquemos com um belo conselho de Jean-Cleude Maleval[7], quando nos diz em sua resposta à intervenção que:

Temos que ter cuidado para não deixar de ouvir a intervenção de P. B. Preciado: ele veio lembrar a psicanálise da necessidade de evolução permanente. Os modos de gozo são tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de apontar que “o inconsciente é a política” !

[1] rsilva.juliana@gmail.com
[2] Paul B. Preciado em sua Intervenção na 49ª Jornada da Escola Da Causa Freudiana (17/11/19). Texo disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2019/12/paul-b-preciado-intervencao-na-49.html
[3] Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
[4] Leguil, C. O ser e o gênero: homem/ mulher depois de Lacan – Belo horizonte: EBP Editora, 2016.
[5] Marcus André Vieira. Com quantos elementos se faz uma invenção? Disponível em:https://ebp.org.br/sul/com-quantos-elementos-se-faz-uma-invencao%c2%a8/
[6] BUTLER, Judith. 2019. Vida precária: os poderes do luto e da violência Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica.
[7] Jean-Claude Maleval. Resposta à intervenção de Paul B. PreciadoDisponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/search?q=maleval
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