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Entre fake e ex-sistência

Diego Cervelin*
“Nem sempre as nuvens ofuscam o céu:
às vezes, elas o iluminam”
Elsa Morante

 

Antes de mais nada, algumas perguntas que talvez demandem outras coisas que não respostas rápidas demais: que terá acontecido com quem, tempos atrás,ria do fake vendido como realístico – por exemplo, em filmes ao estilo de A bruxa de Blair – e foi capaz de votar em Donald Trump? E já mais ao sul da linha do Equador, que terá acontecido com quem, anos atrás, ridicularizava as repetidas valentonadas de Jair Bolsonaro em programas de humor e foi capaz de apostar – ou de… pelo menos dizer que apostava – que ele não configuraria nenhum ponto de inflexão nos caminhos da construção da democracia no Brasil? Se até mesmo Nicolau Maquiavel foi capaz de descrever alguma erótica em relação à política (com todas aquelas artimanhas virilmente virtuosas interpostas aos meneios da Fortuna), Trump e Bolsonaro parecem ter conseguido formula refetivos e verdadeiros feitos de pornografia política. Trata-se da exposição nua e crua de que, no reverso da palavra comunicativa, sempre houve e há gozo, mais ou menos modulado. Quem sabe… inclusive já possamos assumir que é enganoso considerar que se trata de coisa amadora. Aliás, de amadorismo parece haver muito pouco ou quase nada. A questão, no fundo, talvez esteja em saber em que consiste essa expertise e se… mesmo assim, ainda sobra algum espaço para amor depois de tamanha disseminação de ódio. Figuras como Trump e Bolsonaro surfam na crista da onda do real que se entranha no tecido linguageiro. Mas não deixa de ser irônico que justamente uma emergência do real também tenha mostrado que algumas ondas podem ser muito maiores do que eles e seus negacionismos. Diante disso, as vacinas apresentam alguma eficácia real, embora tampouco seja suficiente.

Lacan, no decorrer de seu ensino e sem grandes arroubos salvacionistas, foi bastante taxativo em sustentar que, do real, só se apreendem alguns pedaços. Essa consideração talvez não esteja tão longe assim da virada que, no Seminário 16, se abateu sobre uma das clássicas frases da época da primazia do Simbólico, isto é, quando Lacan retomava “eu, a verdade, falo”para então assinalar que “o fato de ela falar não significa que ela diga a verdade”[1]. De fato, nesses tempos em que as verdades brotam aos gritos e em caixa alta, os psicanalistas podem ter muito a dizer. (Contudo, se isso servir para apenas engrossar o caldo das verdades gritadas e em caixa alta, talvez coubesse seguir, antes, aquele antigo conselho evocado pelo pintor seiscentista Salvator Rosa: auttace, autlo quere melior a silentio, algo mais ou menos como “cale-se, a menos que o que tem a dizer seja melhor do que o silêncio”).Afinal, escutar, ou seja, ler as trilhas de gozo que decantam nos desfilamentos da verdade mentirosa é algo que, sim, possibilita emergir algum bem-dizer – mesmo que parcial e precário – em torno do encontro contingente que nos constitui como seres falantes, sexuados e com modos singulares de gozo. Por outro lado, na medida em que “o gozo do Outro não é o gozo do Um”[2] e considerando-se, quem sabe, alguma possibilidade de presença do analista cidadão[3], não se poderia assinalar que aquilo de que os analistas mais têm a dizer se relaciona justamente tanto com a promoção quanto com a verificação daquele saber em torno do que faz furo no Simbólico? Não mais para descortinar o sentido que resiste entre as palavras ou por trás delas, senão para reabilitar alguma possibilidade de fazer algo com aquele fora do sentido que, ao pegar carona nas palavras – e nos gritos –, insiste na superfície da pele de um e de outro.

 

* Da Equipe da Diretoria de Biblioteca da EBP Seção Sul.

[1] Lacan, Jacques. O Seminário. Livro 16 – de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 168.
[2] Ventura, Oscar. Identificação, acontecimento de corpo e laço social. In: Arteira – Revista de psicanálise, n. 10, Florianópolis, Escola Brasileira de psicanálise – Seção Santa Catarina, 2018 Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/index.php/identificacao>.
[3]Cf. Laurent, Éric. O analista cidadão. In: A sociedade do sintoma – a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007, pp. 163-178.
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