#04 - SETEMBRO 2024
Ensinar a dizer?
Fernanda N. Baptista
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No seu universo particular, acompanho em silêncio a narrativa do brincar da pequena cozinheira: “Prontinho, agora está indo para o forno. Vou fazer o próximo macarrão. Aperta um pouquinho, vou tirar com cuidado. Mais um macarrãozinho. Agora vai para o forno. Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac. Mais um macarrão. Enrola, enrola, enrola. Corta, corta, corta.” Ao final da série de fornadas feitas, decide empanturrar a sua boneca com todo o macarrão que produziu na duração do tempo transcorrido, e a analista interrompe: para que tudo isso? Ao que ela responde: Mas como eu vou parar, se ela está pedindo?
Como nos lembra Ana Lydia Santiago sobre os infindáveis desejos das crianças na hora de dormir para justamente se evitar a adormecer, a criança ” quer continuar brincando, pede mais um beijo, deseja ver mais alguma coisa ou escutar a leitura de um livro, a mãe deve satisfazer alguns desses desejos e adiar outros para o dia seguinte”[1], criando uma cadência de ausência e presença, condição de possibilidade para que o desejo se mantenha vivo.
Há também uma cadência no percurso de uma análise, em que significantes mestres se destacam, sentidos se produzem, o fora do sentido faz perturbar, voltas e voltas, cortes -também- para não se empanturrar. No recorte da sessão, a pergunta da analista surge com o tom de espanto, e faz aparecer a própria enunciação do sujeito e seu impasse frente ao desejo materno, ao qual o sintoma da criança está enlaçado.
No início do seu ensino, no Seminário Livro II, Lacan localiza um ponto que ainda me parece orientador na clínica contemporânea:
o analista resiste quando não entende com o que ele tem de lidar. […] quando crê que interpretar é mostrar ao sujeito que, o que ele deseja, é tal objeto sexual. Engana-se. […] trata-se pelo contrário, de ensinar o sujeito a nomear, a articular, a fazer passar para a existência, este desejo que está, literalmente para aquém da existência, e por isto insiste[2]
Não passa despercebido o uso do verbo ensinar aqui contido, que ao menos na tradução do texto comparece. Ensinar pode nos remeter primeiramente a um mestre e seu aluno, mas sabemos que numa análise o saber que está em jogo trata-se de um saber suposto (quando ainda comparece), e, do outro lado, o saber do analista, que reside em fazer existir o discurso do analista, para que a enunciação apareça e tome o seu valor. Recolho também do Eixo 2 a pontuação feita por Flávia Cêra em que põe o acento que é tarefa do analista fazer do inconsciente um acontecimento[3]. São duas orientações muito interessantes que, me parece, dizem respeito ao desejo do analista e sua função.
Lacan, continua, “[…] não se trata de reconhecer algo que estaria aí, já dado, pronto para ser coaptado. Ao nomeá-lo, o sujeito cria, faz surgir uma nova presença no mundo. […] É apenas nesse nível que a ação da interpretação é concebível.[4]”
Penso, com isso, que, por estarem mais próximas do pulsional, do gozo inintepretável é que as crianças pequenas, como a pequena cozinheira, podem ensinar algo sobre a clínica contemporânea. Do espanto do analista ao endereçamento de uma questão a partir do seu ponto de angústia.
[1] Santiago, Ana Lydia. O pesadelo da criança e sua interpretação: fazer surgir a falha no sentido do sonho. Disponsível em: www.revistarayuela.com/pt/010/template.php?file=notas/la-pesadilla-de-un-nino-y-su-interpretacion.html
[2] Lacan. Jacques. Seminário Livro 2. o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 309.
[3] Cêra, F. Estar à altura do acontecimento imprevisto. Site da 5ª Jornada da EBP-Seção Sul. Disponível em: https://ebp.org.br/sul/eventos/jornadas/5a-jornada-da-ebp-secao-sul-discursos-e-corpos-a-causa-do-dizer/5a-jornada-da-ebp-secao-sul-discursos-e-corpos-a-causa-do-dizer-eixos-tematicos/5a-jornada-da-ebp-secao-sul-discursos-e-corpos-a-causa-do-dizer-eixos-tematicos-eixo-2-estar-a-altura-do-acontecimento-imprevisto/
[4] Lacan. Jacques. Seminário Livro 2. o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 309.