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Ecos do inimaginável – Sobre a atividade preparatória Escavar a terra, revirar a cinza: modos de existência do inimaginável com Marcelo Ribeiro.
Por Flávia Cêra (EBP/AMP)
Sobre a atividade preparatória Escavar a terra, revirar a cinza: modos de existência do inimaginável com Marcelo Ribeiro.
Nos desdobramentos do nosso tema de trabalho, chegamos ao inimaginável e recebemos Marcelo Ribeiro, professor de História e Teorias do Cinema e Audiovisual da Universidade Federal da Bahia que nos ofereceu uma belíssima e generosa apresentação e conversa. Marcelo nos falou da experiência paradoxal do inimaginável a partir de Robert Antelme, um sobrevivente dos campos de concentração nazista. O inimaginável atua em um constante trabalho nas entre-linhas, nos entre-lugares das imagens, dos textos, lá mesmo onde a experiência e a linguagem sofrem uma disjunção, onde o fio do sentido se perde. Assim, essa experiência nos impõe o dever de imaginação. Por que é importante o exercício de imaginar o inimaginável? Uma das razões é, justamente, para fazê-lo existir, para escrevê-lo na história, para que não seja esquecido, repetido, ou abandonado em uma sorte de paixão da ignorância, fonte de muitos negacionismos. Se, por um lado, ele representa, por outro ele sempre aponta para o irrepresentável, para seu resto que não pode ser integrado e que tampouco reconstituído em sua integralidade. De modo que ao inimaginável não podemos inferir um é, mas podemos dizer que ele existe. E existe como presença irredutível desse resto que atesta que a história não poderá mais ser contada da mesma maneira. É a irrupção de algo que não pode apelar ao Outro para sua restituição e não pode reconstruir uma origem. Se apresenta como uma mudança no tempo e no espaço que reconfigura o mundo. Uma experiência de perda e falta que resta opaca, na hipótese de Marcelo, como as cinzas propostas por Derrida. Isso nos ensina, em alguma medida, sobre a irrupção do Um, esse real do gozo que atesta a inexistência da relação sexual, porque tem algo que ressoa a ideia de origem, de algo que se apaga e se inscreve como a possibilidade de leitura que a análise permite para ir constituindo uma borda em torno do indizível. Tomando o Um como a abertura de uma fratura onde não existe relação complementar nem restituição da perda, como um acontecimento heterogêneo em que a trama ficcional estabelecida na fantasia se rompe e algo dali começa a restar. Se trata menos de restituir a ficção, e mais de construir as fixões e com os restos, compor. Portanto, essa exigência de imaginar o inimaginável, lugar que nos exige uma ética, é o constante trabalho de narração, fragmentário por excelência, que pode fundar outros pontos de partida. É importante destacar também que o trabalho de leitura, de escrita, de representação a que o inimaginável se presta, para que ele se inscreva, é sempre o de uma contra-história, de uma leitura a contrapelo, que cava os sulcos na organização dos arquivos que se pretende sem restos. Por isso é importante mantê-lo como força muito mais que como forma, manter ali mesmo na representação seu núcleo irrepresentável, o ilegível no legível, para sustentar seu ponto de indeterminação, seu caráter aberto. Não por acaso, uma das obras de criação com os restos evocadas por Marcelo foi a ação de Denilson Baniwa Nada que é dourado permanece 1: Hilo em que o artista indígena leva as cinzas do Museu Nacional para um plantio de ervas medicinais, flores na parte externa da Pinacoteca também considerada pelo artista como um anti-monumento aos indígenas atingidos pela Covid-19. Tantas linhas de força se inscrevem nessa obra: os monumentos, a violência, os arquivos, a história, tantas camadas de um país fundado (e continuado) no genocídio indígena podem ser lidas nessa ação que germina com os restos, que atesta, como nos lembrava Marcelo, que não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. O gesto de re-existir (ou rexistir, um pouco ao modo da fixão) da incansável luta indígena nos dá o tom do que é viver sob a égide do inimaginável, quando inúmeras vezes viram seus mundos ameaçados senão acabados. São eles quem têm nos mostrado recentemente no acampamento Luta pela Vida em Brasília, por ocasião da votação do Marco Temporal, que na política de rexistência existe violência e morte, canto e dança, corpo e vida, e que toca a cada um de nós ouvir suas histórias, imaginar com eles esse inimaginável para resistir à desapropriação da terra que é, em última instância, a expropriação do corpo de cada um e da vida de cada povo. E já é tempo.