#04 - SETEMBRO 2024
Dos encontros possíveis: corpo, discurso e acontecimento.
Juliana Rego Silva – Cartel Fulgurante
EIXO 3: O DISCURSO FAZ DO CORPO UM CORPO
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Dos encontros possíveis: corpo, discurso e acontecimento.
O trabalho no cartel fulgurante para pensar as questões de investigação propostas no terceiro eixo da nossa 5ª Jornada tem sido precioso. A orientação é a de nos debruçar sobre a bússula de pesquisa descrita por Cinthia Busato (EBP/AMP) no terceiro eixo em O discurso faz do corpo um corpo, acolhendo e identificando o que ali, para cada um de nós, pode produzir um certo tipo de causa. O caráter fulgurante deste cartel diz respeito não só ao curto tempo de trabalho, mas também ao seu estilo vívido de produção. Neste modelo de pesquisa, parece-me ser preciso aprender a tecer trilhos abrindo caminho a uma fugaz inquietação. Além das riquíssimas contribuições dos colegas, o efeito de desejo de saber consequente das intervenções do mais-um Antônio Teixeira (EBP/AMP) nos traz aqui para compartilhar um pouco deste processo – que ainda está em andamento.
Podemos pensar que o corpo que suporta os discursos é o corpo pulsional do falasser, onde estão conjugados significante e suas derivas de gozo, aquele corpo que se goza[1]. Foi essa a frase de Cinthia que me saltou imediatamente aos olhos. De algum modo, quis entender a partir daqui um pouco melhor essa relação entre corpo e discurso para pensar como poderíamos identificar, escutar ou até mesmo intervir a partir do que se encontra como efeito desta relação.
Bom, é preciso dizer que esses significantes que orientam o tema de pesquisa de nossa jornada – corpo, discurso, causa do dizer – são significantes complexos porque, para além de uma dimensão psicanalítica desses termos, sabemos que os mesmos aparecem também já elaborados em outros campos do saber. Desde o nosso primeiro encontro do cartel conversávamos sobre essa interdisciplinaridade possível e desejável para uma psicanálise à altura de sua época e relembramos juntos alguns outros autores, dentre eles, Michel Foucault. Afinal podemos afirmar, sem receios, que ele foi um dos maiores pensadores contemporâneos da articulação entre corpo e discurso e que o faz, com muita dedicação e estilo em toda a sua obra. Das mais diversas maneiras, seja para pensar a relação histórica entre o poder e o corpo a partir da noção de biopolítica, para localizar o corpo na problemática da história da loucura ou da sexualidade, na genealogia dos discursos e dos saberes e suas consequentes produções culturais e subjetivas…Enfim, Foucault está aí para nos ensinar muito sobre o tema.
Aos ouvidos desavisados, é comum um certo estranhamento ao escutar a aproximação da psicanálise com a obra Foucaultiana. Evidentemente é preciso reconhecer que o mesmo teceu algumas críticas à psicanálise em sua obra, principalmente no primeiro volume da História sobre a Sexualidade – a vontade de saber. De maneira geral, ao estudar ali os discursos que compõem uma certa noção de sexualidade na história moderna e a relação com o que se produz como corpo a partir daí, ele identificou uma certa normativa édipo centrada e a colocou em questão. Alguns anos depois, Foucault deixa claro seu interesse e admiração pela teoria psicanalítica em uma entrevista realizada com Miller para pensar nas transformações que Lacan causou a teoria psicanalítica e nomeia esta entrevista, que virou um capítulo de uma de suas obras, como Lacan o libertador da psicanálise[2]. Podemos concordar aqui que este não foi qualquer título, não é mesmo?
Dito isso, segui a pesquisa com o interesse nessa articulação entre corpo e discurso e tomei como espécie de via régia de pesquisa, o conceito de acontecimento de corpo. Essa expressão, usada por Lacan apenas uma vez em Joyce o sintoma, aponta para o resultado traumático do encontro do corpo com lalíngua. Jacques Alain Miller retoma esse conceito anos mais tarde, em Elementos de uma biologia lacaniana. O que o orienta nesse trabalho é precisar o que é a noção de um corpo vivo em psicanálise[3]. A relação entre o traumático e a noção de acontecimento de corpo aparece também em relatos de passe, como por exemplo, o de Ram Mandil[4]. Afinal, em um relato de passe, como transmissão do Real de uma análise, podemos aprender a partir de uma experiência singular com a pulsão, o modo como cada um tenta se resolver com os efeitos do encontro da palavra no corpo e como se aciona, aí, o aparato fantasmático para cada sujeito.
Há aqui algo importante a ser considerado e que vem sendo aprofundado durante nossas discussões de cartel. O termo acontecimento de corpo se refere ao resultado traumático do encontro de lalíngua com corpo e seus decorrentes efeitos de inscrição. Para entender mais esse conceito, recomenda-se o estudo do texto Joyce, o sintoma , de Lacan, e Elementos de uma biologia Lacaniana, de Miller. Para finalizar e compartilhar a abertura de um caminho de pesquisa, digo que o que ficou como questão para mim foi: uma coisa é pensar o encontro do corpo com lalíngua, outra coisa é pensar o encontro do corpo com o discurso (ou os discursos). Parece ingênua essa diferenciação, mas a partir do seminário 17 sabemos que discurso se trata de modos de organização de gozo, modos de laço social. São tempos lógicos diferentes para processos que estão relacionados, porém são distintos. A ideia do encontro do corpo com os discursos a partir da noção de laço social nos faz pensar já não tanto apenas nos efeitos traumáticos de lalíngua, mas também, nos efeitos traumáticos no encontro de cada corpo com os restos discursivos dispostos na cultura. Como podemos pensar o que ressoa desse encontro na clínica hoje? Fica aqui o convite para realizarmos juntos esse debate.