Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
Do indizível ao visível
Integrantes: Artur Cipriani; Cinthia Busato; Cleyton Andrade (Mais-Um); Flávio Desgranges e María Mercedes Rodriguez.
Cínthia Busato (EBP/AMP)
Começo apresentando uma sequência em 3 tempos:
Primeiro tempo: a cena vista em um filme, uma mulher arrancando o próprio olho em frente ao espelho, me jogou numa angústia avassaladora, fico com essa marca do horror e durante muitos anos não consigo nem pensar em rever o filme.
Segundo tempo: depois de vários anos consigo assistir novamente e essa angústia não se apresenta. Esse segundo tempo não lembro com clareza, muitas vezes duvido se assisti novamente ou não. É um tempo obscuro
Terceiro tempo: vários anos depois inicio este cartel onde nos propusemos a pensar que filme nos tocou de forma angustiante ou de algo do infamiliar visto na tela. Imediatamente me vem a cena que vi , o primeiro tempo. Minha surpresa foi verificar que essa cena não estava no filme, não existia. Um instante de vacilação da realidade, uma perda rápida de referência me confunde, “vi ou não vi?” . Daí para a fala ” Artur, me ajuda a procurar, deve ser outra edição a que vi!” foi um pulo. De fato era outra edição, mas realizada inconscientemente.
No Seminário 20, Lacan apresenta a angústia como o que surge entre o imaginário e o real sem a intermediação do simbólico. É por isso que podemos apreender a angústia como o afeto que não engana[1]. Ela é vivenciada sem os emaranhados dos significantes.e, nesse caso, nos desvela um olhar selvagem, um transbordamento do pulsional.
Esse ponto selvagem à domesticação do sentido esteve sempre presente nas pesquisas de Freud[2] foi o que ele pode ouvir das primeiras histéricas e foi por não tomar como mentira suas palavras pode perceber que essas tem por função velar um opaco dentro da narrativa histórica de cada um. Assim a fantasia ocupa o lugar do fato e o efeito a posteriori remodela as lembranças, conferindo-lhes uma significação que não possuíam. As lembranças não emergem prontas, elas são formadas, construídas a partir de traços mnêmicos.
Para Freud a percepção não nos apresenta objetos que em seguida serão nomeados pelas palavras. A percepção nos oferece imagens elementares: visuais, táteis, acústicas que vão formar o que ele chamou de associações de objeto. Essas associações de objeto não formam ainda um objeto, isto é, algo com uma unidade e um significado, elas constituem um disperso sensível a partir do qual o objeto será constituído. Essa é uma linguagem assimbólica e está invariavelmente aberta à novas associações. É a palavra que confere às imagens sensoriais dispersas uma unidade e um significado, é ela que transforma as associações de objeto em representação-objeto.
Freud parte do pressuposto de que quando uma percepção afeta o corpo do sujeito, esta é apreendida por ele através de sensações, que com o encontro com o Outro, fundam um processo de inscrição rudimentar, ainda não ligada ao signo linguístico, mas aberta à ele. Esses elementos irrepresentáveis, as impressões dos signos de percepção, na carta 52[3]aparecem como a matéria prima do aparato psíquico. O corpo antecede o desejo da mãe, é um corpo opaco às significações, portanto, fica como um furo em torno do qual se articula o sentido e as marcas de gozo.
No texto “A negativa”[4], a Austossung é apresentada como o ponto de partida da configuração do ser. “A partir do princípio do prazer, o que é expulso por ser desagradável estabelece-se de forma radical no dito do sujeito “isso não sou eu”. Por outro lado, o que se apresenta como experiência prazerosa é introjetado como sendo ele. O elemento expulso foi experimentado pelo ser vivente e o marcou como modo de satisfação sem compromisso com o prazer, uma excitação ligada ao horror. “É, portanto, o gozo que se apresenta como paradoxal, que diz respeito ao sujeito e foi por ele radicalmente rejeitado”[5].
Rômulo esclarece nesse mesmo texto que essa operação da constituição do sujeito se dá miticamente sem a interferência do simbólico. Trata-se da participação do imaginário e do real na constituição de um corpo que goza, subtraído do alcance do simbólico. Como tal, permanece no real porque o imaginário não é capaz de estabilizá-lo. A imagem forjada no primeiro tempo, que aparece como tão desestruturadora e angustiante, sem palavras possíveis para dizer, não pode ser pensada como esse imaginário que toca o real? Uma imagem que vela/desvela esse corpo anterior ao processo de simbolização que via desejo da mãe e nome do pai vamos construindo na vida? Entre a primeira cena e a terceira, um processo de análise tratou esse indizível ligado ao objeto olhar e no lugar da angústia pode aparecer o riso, outro indizível, mas agora sem horror e no laço.
As imagens tocam um olhar que é corpo, tocam o corpo sem imagem, o real que faz fissura na realidade, essa que é nosso olhar domesticado. Assim como o furo do ato falho aparece ligado ao sentido, será que podemos pensar em imagens que podem se apresentar da mesma forma?