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Desejo do analista e o analista que deseja: entre-laços e desen-laços[1]

Verônica Paola Montenegro

Percorrer os caminhos que a questão do cartel provoca, me parece uma travessia sem igual, pois o trabalho de contornar o saber a partir da teoria não aponta a um esgotamento da questão, embora a neurose puxe para lá, e o produto do cartel é a chave de ouro desse furo que insiste. Mergulhar na construção deste resto foi a demonstração viva do desafio que conseguir sustentar o furo do saber como causa pode vir a ser. Para fazer esta travessia, precisei encarar uma frase que não deixava de insistir: o desejo do analista não é a mesma coisa que o analista desejar alguma coisa. Essa frase surge depois de ter ouvido, em diferentes espaços, alguns equívocos a respeito da confusão que pode produzir a contração “do” analista, que parece referir-se a que o desejo é do sujeito que ocupa o lugar de analista. O que também me fez pensar que o equívoco poderia ter algum sustento, pois, se o desejo do analista “não é um desejo puro” (LACAN, 2010, p. 284), poderia haver restos desse sujeito que se confundiriam na operação que implica o desejo do analista.

Já advertia Lacan (1992) que o inconsciente não é reduzido a zero, que o analista nunca é completamente analista por estar atravessado pelos mecanismos imaginários que obstaculizam o deslocamento da palavra (2009), ou também que não se trata de o analista ocupar um lugar de ideal estoico, insensível às emoções, pois o analista se afeta (1992). A questão é: do que e por que se afeta, e o que fará com essa afetação?

Se o analista opera a partir daquilo que, como sujeito, é afetado, haveria uma confusão entre a posição do analista e a do analisante. Uma advertência que faz Miller (2012) é que as duas posições devem manter-se separadas, por um lado como sujeito analisante e, por outro, a sua posição como analista, pois senão o desejo do analista viraria uma análise da contratransferência. Para trabalhar nas diferenças dessas duas posições, é indispensável sustentar o trabalho do tripé analítico; isso, porém, não simplifica a dificuldade do analista de separar o seu ser do seu sintoma. Ele não opera a partir dele, o que supõe uma separação da sua posição de gozo, mas a complexidade dessa separação demanda um “esforço que jamais termina, implica um certo trabalho e vigilância contínua”, diz Brousse (2001, p. 98).

Leda Guimarães (2002) explica a necessidade de se fazer uma distinção conceitual do desejo do analista, já que ele não possui uma definição unívoca no ensino de Lacan. A diferença está, por um lado, em tomar o desejo do analista como uma função diretiva da análise e, por outro, em pensá-lo como um desejo inédito, que emerge, no final da sua análise, na passagem de analisante a analista.

Essa distinção teórica permite contornar uma questão que insiste: se o analista é produto da sua própria análise, se o desejo como inédito surgirá no seu final, o que faz o praticante enquanto isso? Como sustentar o desejo do analista que opera na direção das curas da sua clínica? Como operar a partir do desejo do analista como função, enquanto se percorre o caminho até o desejo como inédito?

Na tentativa de contornar, mas sem responder, a pesquisa do cartel me permitiu pensar na possibilidade de que exista um movimento de entre-laços e desen-laços que se dá no sustento da função, um movimento que vai entre o analista que deseja e o desejo do analista que opera, ou, dito de outro modo, entre o ser do analista e o des-ser do desejo do analista.

Quanto ao movimento que se produz nesse espaço de “entre”, poderíamos pensar que se trata de uma trama que se enlaça e se desenlaça à fantasia do praticante. É inevitável que, ao longo do percurso, algo dessa trama aperte e então escape, mas a advertência do praticante possibilita o uso disso que escapa para percorrer o tripé. Então, o movimento contingente da trama fantasmática nesse espaço de “entre”, junto com a posição que o praticante toma perante este, decantaria um lugar possível que se desenlaça da fantasia, suspendendo-a, e permitiria a operação do desejo do analista enquanto função, enquanto vazio necessário, para que seja o analisante quem teça nele a sua própria trama.

O desejo inédito que emerge no final é produzido por uma mutação subjetiva da posição de gozo do praticante; desenlaçar essa trama de gozo exige um percurso, que irá desde a patologia neurótica que está no fundamento do desejo de ser analista (a vocação de curar, de ajudar, de compreender) até o traço singular que suscitará a passagem de analisante a analista. Mas esse movimento de “desde” a “até” é uma travessia de um vai e vem. O desejo do analista não é a mesma coisa que o sujeito do analista desejar alguma coisa, do mesmo modo que “o desejo do analista não é o desejo de ser analista”, porém “de um ao outro há ruptura, enredo, zigue-zague” (MILLER, 2012, s/p) de entre-laços e des-en-laços, um movimento singular de de-formação que se dá ao longo do percurso analítico, na sua própria análise, mas também a cada sessão da sua prática, a cada escuta, com cada analisante.


Bibliografía:
BROUSSE, M.-H. ¿Cómo opera el psicoanálisis? Seminario internacional del campo freudiano, Guayaquil, jul. 2001.
GUIMARÃES, L. Um desejo inédito. ¿Ornicar? digital, Paris, n. 208, 2002. Disponível em: <https://wapol.org/ornicar/articles/208gui.htm/>. Acesso em: 16 out. 21.
LACAN, J. Livro 8: Transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. Seminario 3: Las psicosis. Buenos Aires: Paidós, 2009.
LACAN, J. Seminario 11: Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 2010.
MILLER, J.-A. Consideraciones sobre los fundamentos neuróticos del deseo del analista. Freudiana, Barcelona, n. 63, 2011. Disponível em: <https://freudiana.com/consideraciones-sobre-los-fundamentos-neuroticos-del-deseo-del-analista/>. Acesso em: 16 out. 2021.
MILLER, J.-A. Cómo se deviene psicoanalista en el siglo XXI. Nueva escuela lacaniana de psicoanálisis/NEL-Bogotá, 13 out. 2012. Disponível em: <http://nelbogota.blogspot.com/2012/10/jacques-alain-miller-les-entregue2-este_9599.html>. Acesso em: 15 out. 2021.

[1] Embora ‘desenlace’ tenha como primeira acepção ‘desenlaçamento’ (antônimo de ‘laço’), possui também o significado de ‘conclusão’, ‘desfecho’; por isso, proponho o neologismo ‘desen-laços’ para pensar uma trama que possui laços mais ajustados quando a patologia neurótica aperta, mas em que o movimento singular do percurso produziria desen-laços, até restarem alguns laços sintomáticos incuráveis que sustentarão o fundamento do desejo do analista.
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