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Da estupidez ao ato

Marcia Stival
EBP/AMP

 

“Será que a cabeça
Tem o mesmo tempo que a mão?
O tempo do pensamento
O tempo da ação”

Arnaldo Antunes

[Foto de Solomon R. Plaza – Floema – Festival de Curitiba, 2018]
Instigada pelos ecos da segunda preparatória da V Jornada da Seção Sul, me propus avançar com base numa colocação do Seminário XIX de Lacan sobre a estupidez, que destaquei durante esta atividade.

O percurso que sigo neste texto foi calcado na seguinte questão: como a política da psicanálise pode incidir sobre o tempo?

Voltei ao Seminário XIX, … ou pior, no capítulo em que Lacan menciona a política. Deparei-me com uma condução que parte da escrita, para chegar no que será um dos pontos relevantes do seminário: o axioma “não há relação sexual”. Sem entender muito, estava dando um primeiro passo para abordar o tempo.  Então, se “o sexo não define relação alguma no ser falante”[1] e cada um encontra um jeito de lidar diante dos obstáculos, sofrendo e se satisfazendo de modo próprio, é possível considerar que há uma tendência do ser habitar a estupidez?

“Estupidez é aquilo em que se entra quando… se aborda a função essencial (da linguagem), que é a de preencher tudo o que deixa de hiante a impossibilidade de existir relação sexual…”[2] Mas Lacan nos adverte que nenhum escrito, como produto da linguagem[3], consegue dar conta desta empreitada, preenchendo tudo.

A posição de gozo de certos sujeitos contemporâneos indica a falta de interesse para saber sobre as diferenças, bem como aponta a dificuldade de ceder este gozo que advém do discurso capitalista.[4]

Então, manter-se na estupidez é um modo de tentar sair do tempo? Para Lacan, a tentativa de sair do tempo está em consonância com a eternidade. Ou seja, “com a contemplação do verdadeiro para sempre.”[5] Mas se a eternidade é ao que se visa, vale considerar de que tempo se trata quando recolhemos de Lacan a “saída do tempo”. A estupidez é uma maneira de tentar sair do tempo presente? Minha aposta vai nesta direção, ao considerar que o tempo que se vive é permeado de contingências e que “o verdadeiro se autoperfura.”[6]

A proposta de Lacan é encontrar a raiz da articulação do verdadeiro e do buraco no próprio corpo. Ou seja, no corpo e nos buracos que ele possui. Há inclusive um testemunho da correlação entre os buracos abstratos da enunciação e os buracos corporais, no Seminário XI.[7]

Por esta via, o que vem a ser reconhecido como um ato analítico, diz da presença da enunciação que mobiliza o verdadeiro no falasser, por tocar o corpo e inscrever o sujeito no tempo presente.

Neste encaminhamento, podemos considerar que a política psicanalítica propõe o despertar da eternidade, enquanto “um sistema político bem-sucedido deve permitir que a estupidez tenha seu lugar.”[8]

Prossigo minha pesquisa considerando os efeitos da contemporaneidade, as questões que levanto e a aposta no ato analítico.


[1] LACAN, J. O Seminário livro XIX, … ou pior Rio de janeiro, Zahar, 2012, p. 13.
[2] Idem, p. 28
[3] Idem
[4]BOLGIANI, PAOLA Le désir, um enjeu politique  https://www.hebdo-blog.fr/desir-enjeu-politique/
[5] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 263.
[6] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 112.
[7] Idem.
[8] LACAN, J. O Seminário livro XIX, … ou pior Rio de janeiro, Zahar, 2012, p. 27.

 

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