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Da Escola que atrapalha o gozo à interpretação desagregativa[1]

Nohemí Brown[2] (EBP/AMP) 

Wassily Kandinsky

Quero agradecer à Gresiela e ao Arthur por suas contribuições. Um trabalho de enunciação que anima, que toca e produz crise, se tomamos a ideia de Gresiela. Agradeço também porque extraíram um ponto do texto “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”[3] para elaborar. Achei importante isso, pois é nosso texto de trabalho neste momento.

Gostaria de destacar de entrada uma pergunta que, me parece, reverbera nos dois textos e que, cada um à sua maneira, visa elucidar ou pontuar: O que é a Escola Sujeito?

De início, a partir dos trabalhos, podemos dizer: é importante não dar por suposto o que isso quer dizer. Essa é a pergunta que se abre inclusive já com o título do texto de Jacques-Alain Miller, a que se refere quando fala do Sujeito da Escola? Sujeito dividido? Sujeito barrado? Sujeito suposto saber?… Essas são as dimensões do sujeito que tanto Arthur como Gresiela foram respondendo e colocando a trabalho.

Se pensamos a Escola como sujeito, quase damos uma consistência a ela. Ela é o sujeito da frase, mas, como bem situam as elaborações de Gresiela e Arthur, trata-se melhor de destacar o lugar de inconsistência. O que a torna inconsistente é o que faz dela uma experiência inaugural, o mais vivo e só a partir desse ponto pode haver um lugar para a transferência de trabalho.

Vou destacar alguns pontos do texto de cada um, os quais extraí com precisões que me ensinam, mas também alguns que me colocaram perguntas e sobre os quais espero que possamos conversar depois.

Sobre o texto de Gresiela

Uma pontuação que destaco, surgida de um lapsus e que foi muito importante. É uma espécie de hipótese sobre a Escola: “A Escola atrapalha demais o gozo”. Para este seminário, podemos colocar essa afirmação como uma pergunta: A Escola atrapalha o gozo? O que isso quer dizer? Pelo efeito que produziu e deu lugar a um desejo, parece que é interessante que uma Escola de psicanálise atrapalhe o gozo. Mas atrapalha o gozo próprio, o dos outros? É interessante dizer atrapalha e não ordena, o que é outra coisa.

Também achei instigante o título, que é de fato o ponto que sustenta Gresiela a partir de Anne Carson: todo contato é crise. O termo crise me pareceu muito interessante, pois, trabalhando sobre os cartéis, os momentos de crise eram momentos difíceis, mas, ao mesmo tempo, quando se extraía da crise o vivo da experiência, o que estava em jogo no impasse, produziam-se efeitos de ensino, mesmo que o cartel se dissolvesse. Este foi um ponto importante. Inclusive, um dos textos de que mais gosto do livro que organizei sobre os cartéis é a pergunta que lancei a Bernardino Horne e que ele não recuou em responder. Perguntei para ele se há cartel sem crise[4]. Se há cartel sem crise, podemos dizer: ‘É outra coisa, não é cartel’, mas também não se trata de gozar produzindo crises. A crise se apresenta evidenciando o real em jogo, tanto no próprio trabalho do cartel como no próprio grupo. Esse é um ponto que me parece importante destacar da contribuição de Gresiela. Ela coloca essa dimensão da crise em termos de alteridade enigmática. Podemos dizer que fazer da alteridade algo enigmático é já dar um passo importante, mas não natural. Dar a isso que irrompe em sua estranheza como alteridade um estatuto de enigma é já fazer da alteridade um enigma que nos incumbe. E não como algo deslocado aos outros.

Também a dimensão da alteridade que vem sob a forma do estranho no outro e que nos toca abre a pergunta: quem é esse quem fala? “Onde estou no dizer?”[5] Isso já é um deslocamento que, como bem situa Gresiela, “há aí um tipo de desaparecimento do sujeito” que se surpreende com sua enunciação.

A Escola como um lugar, não tanto em seu estatuto geográfico, local, mas um lugar a ser sustentado em seu não saber. Um lugar marcado por um litoral que tem no seu centro o não saber. Sabemos que a Escola implica sustentar a pergunta sobre o que é um analista? Uma pergunta em termos lógicos é algo que não se sabe. Esse não saber implica sustentar de forma viva a dimensão de que não há nenhuma definição nem descrição que possa dar conta do ser do analista. Ou como diz Gresiela: “O não saber como centro para que nada ganhe consistência rígida”. Então, quando algo se torna consistente, há que pensar o que está em jogo. A Escola se sustenta como esse lugar de não saber porque sustenta o discurso analítico. Não se trata do gozo da eterna interrogação, mas o furo que a própria palavra implica em seu impacto com o corpo. O que da crise toca.

Gresiela traz diferentes dimensões do Um na Escola e que acho importante destacar:

  1. Traz o Um e o Múltiplo. Poderíamos dizer que o Um como orientação do múltiplo, Um que preserva a riqueza do múltiplo. Nesse sentido, o significante orientação em si mesmo implica essa inconsistência. Não diz o que é, nem como deveria ser, mas marca uma direção.
  2. E o Um a Um como essas solidões, como diz no texto: “Um que pode fazer da crise um movimento”.
  3. Mas também coloca uma interrogação que eu gostaria retomar: sobre o Um e a fantasia. Parece-me muito pertinente, pois indica que só através da experiência analítica e do atravessamento da fantasia algo desse Um do ideal pode ser tocado. É isso? Como pensar essas diferentes dimensões do Um?

E também parece que há certa contradição no texto de Miller, entre o Sujeito Escola[6] e um sujeito que tem relação com seu ideal: por um lado, parece dar consistência à Escola como sujeito, mas por outro a faz desconsistir, remetendo cada um à sua relação com o ideal, com o próprio gozo. Que é um ponto que me parece que Gresiela situa: a Escola atrapalha o gozo. Que gozo se trata de atrapalhar?

Vou retomar algo que Gresiela colocou no início: parece-me que quando situa a questão do Sujeito suposto Saber colocado na Escola, pode ser dada a ênfase ao lugar do saber, muitas vezes encarnado em alguns. Mas também me parece interessante poder interrogar o que chamamos de Sujeito suposto Saber… Se o colocamos como a encarnação de saber, dilui-se a dimensão da suposição e ali há sujeito que sabe. E no próprio dispositivo analítico isso leva ao pior. Vou retomar novamente Bernardino, pois ele coloca Sujeito suposto Saber em seu livro sobre o Campo Uniano como a estrutura elementar da linguagem. Bernardino diz assim: “Para Lacan, o SsS é de estrutura. Da estrutura própria da linguagem. Se instala pela suposição de que uma pergunta inclui, pela razão própria da linguagem, uma possível resposta”[7].

Então, por um lado temos o SsS; por outro, “Tu podes saber o que pensa a Escola”, frase de Lacan que situa muito bem Gresiela. Mas como colocar ali a Escola como Sujeito suposto Saber? Dito assim, fica como se fosse exterior ao que se sabe… Mas ali podemos introduzir o Sujeito suposto Saber, onde nos implica. Onde se coloca em jogo e nos coloca em jogo, com relação à Escola, uma transferência de trabalho desde onde se elaboraram esses produtos. Podemos dizer então: pode-se saber pelo que produzem aqueles que a sustentam e participam, seus membros e não membros. Vou dizê-lo com as palavras de Bernardino: a Escola se instala como SsS pela suposição de que uma pergunta inclui, pela razão própria da linguagem, uma possível resposta. Colocar-se a trabalho na Escola para elaborar essa possível resposta pode dar lugar a um produto. Parece-me que isso desloca o lugar do SsS.

A Escola não como entidade abstrata que sabe, mas onde cada um coloca o corpo, sendo desejável que pela sua análise esteja advertido de seu sintoma e saiba fazer a partir dele.

Sobre o texto de Arthur

Arthur retoma inclusive o que é uma Escola. E a situa ao lado dos pré-socráticos. Mas a pergunta que se faz me parece que vale a pena destacar: “Por que a proposta de Lacan foi de uma Escola, não de uma associação, sociedade, grêmio, confraria, irmandade etc.?”. Na própria pergunta se situa que Escola está nas antípodas do que implica uma associação, sociedade, grupo de psicanalistas. O significante Escola está vinculado com a dimensão de ensino e este se coloca em seu centro. Contudo, trata-se, como já colocamos, de um ensino que tem no centro não o que se sabe para dizê-lo e repeti-lo, mas um ponto impossível de saber, impossível de ensinar. O que é um analista? Isto é, só a partir da experiência analítica que isso pode ser recolhido. O que desloca o sujeito que ensina, ele é mais bem ensinado a partir da sua relação com o inconsciente. Por isso, seguindo a ideia de onde estou no dizer: podemos retomar a pergunta “mas quem ensina na Escola?” No instituto sabemos, na Escola isso não é tão fácil de situar, mas o ensino é seu centro.

Como Arthur faz saber, o que está em jogo em uma sociedade pode ser várias outras coisas e não necessariamente o ensino. A proposta de uma Escola é uma resposta lógica ao impasse da sociedade psicanalítica da época, a IPA. Essa é a crítica de Lacan e, como Arthur lembra, ele a nomeia ironicamente como SAMCDA – Sociedade de Defesa contra o Discurso Analítico. Nós nos juntamos para dizer o que é um analista prescindindo do discurso analítico; reconhecemo-nos entre nós, alguns como didatas. O discurso analítico não faz sociedade, o discurso analítico desagrega; por isso, é difícil sustentar uma Escola que leve em conta o discurso analítico. Não se trata de nos juntar para criticar e dizer o que deveria ser – isso segue a mesma lógica do SAMCDA. O discurso analítico apela para a dimensão do impossível que está na própria experiência analítica, do que a psicanálise nos ensina sabendo que é impossível ensiná-lo. A Escola entra como este lugar que acolhe esse ponto. Ela nos descompleta. Nisso o texto de Bassols sobre a Impossível identificação do analista[8] é muito preciso.

Mas o desejo de fazer Escola implica o inédito que Arthur destaca e me parece importante. Inclusive, permite situar o que Miller diz da Escola, em Política lacaniana[9], como uma experiência inaugural. Podemos dizer inaugurada por Lacan, mas é inaugural para cada um de nós e ali está o inédito. De onde nos inscrevemos e o que nos leva a reconhecer o desejo que nos implica a fazer parte dela. E é constante manter essa experiência como inaugural, tem algo que se inaugura a cada vez. Nisso a permutação nos ensina.

Parece-me que o inédito implica também o onde estou no dizer, como diferente do que se quis dizer. Do lugar de onde se fala é algo que vai além da intencionalidade e que atravessa o dito. O dizer acontece. Ele se extrai como consequência e é o que podemos ler como efeito. Parece-me que a partir da elaboração de Arthur podemos articular a dimensão da solidão. Como ele diz, a

Escola de Lacan é um conglomerado de solidões, de um-a-um referenciados nesse ideal que é a Escola, e/ou então a Causa Freudiana. Uma elaboração a fim de saber do lugar de onde se diz, só se pode fazer a partir desse lugar solitário, desse lugar de um que tem uma relação com esse ideal.

São, portanto, duas dimensões diferentes da causa: uma causa que une e faz grupo, juntos por uma causa; outra, muito diferente – a do lugar de onde estou no dizer, que tem a ver com a solidão subjetiva e da qual cada um se faz responsável a partir da sua análise.

Há um ponto em que Arthur toca e que gostaria de retomar um pouco. É a dimensão da interpretação. Talvez para a última reunião poderíamos considerá-la, mas gostaria de lançar a pergunta um pouco a partir do próprio texto de Miller. De que interpretação falamos quando falamos de interpretação desagregativa? De interpretação na Escola-Sujeito? Alguém que se alça para fazê-la? Um grupo? Considero que é mais complicado. Trata-se de algo que nos interpreta, um ato, um movimento, uma repetição, o que faz sintoma na Escola. Inclusive, se tomamos como referência o dispositivo da conversação, tem como condição que se coloque algo de si e se deixar tocar. A interpretação vem como efeito do dizer de todos os implicados, do outro que me coloca a trabalho e me faz modular, reformular algo que considerava que sabia. Há algo de um consentir com isso que me remete ao onde estou no dizer e não ao quis dizer.

Trago isto como uma provocação, mas de fato me faz pensar. Vamos aos textos.


[1] Comentário realizado no Seminário de Orientação Lacaniana: Onde estou no dizer. Ensino e enunciação. No dia 30 de outubro de 2024. A partir das apresentações de Gresiela Nunes e Arthur Cipriani que podem ser lidos a seguir.
[2] Membro da EBP/AMP. Presidente do Conselho da EBP-Seção Sul.
[3] MILLER, J.-A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. Opção Lacaniana online, São Paulo, ano 7, n. 21, p. 1-16, nov. 2016.
[4] HORNE, B. Sobre a crise no cartel: há cartel sem crise? In: BROWN, N. (org.). Cartel, novas leituras. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021. p. 103-112.
[5] LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 225.
[6] Chama a atenção que usamos mais comumente o sintagma Escola-Sujeito, mas no título do texto de Miller é colocado Sujeito da Escola.
[7] HORNE, B. A pergunta pelo Real. In: HORNE, B.; GURGEL, I. (orgs.). O Campo Uniano: o último ensino de Lacan e suas consequências. Goiania: Ares Editora, 2022. p. 27.
[8] BASSOLS, M. A impossível identificação do analista. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 81, p. 28-50, dez. 2017.
[9] MILLER, J.-A. Política lacaniana. Buenos Aires: Colección Diva, 1999. p. 20.

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