Licene Garcia A Comissão da Diretoria de Biblioteca da EBP-Seção Sul, nesta 7ª edição extraordinária…
COMENTÁRIOS DE MEMBROS DA EBP/AMP & ATUALIDADES
O pai tornado vapor e a erosão do Outro
Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP)
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No texto “O pai tornado vapor”[1], Jacques-Alain Miller refere que, em nossos tempos, o dinheiro vem no lugar do pai e que o capitalismo foi um dos fatores responsáveis para o declínio do patriarcado. Nesta vertente, podemos nos questionar também quais as consequências desses fatores para os laços contemporâneos, principalmente no que diz respeito ao amor.
Byung Chul Han, filósofo sul coreano radicado na Alemanha, no livro intitulado “A agonia do eros”, afirma que as consequências da união do discurso capitalista com as tecnociências podem ser verificadas no fenômeno de rechaço ao Outro, interferindo diretamente nisto que ele chama de agonia do eros.
Para Han, está em curso algo que sufoca essencialmente o amor, que ele chama de a erosão do Outro, caminhando “cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo”[2]. Para ele, tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo e o corpo é equiparado a uma mercadoria: “Não se pode amar o outro, a quem se privou de sua alteridade; só se poderá consumi-lo”[3].
O autor também adiciona como um fator complicador no mundo contemporâneo o fato de cada vez mais os sujeitos serem empreendedores de si mesmos. O sujeito de desempenho, como ele chama, seria supostamente livre na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram. Porém, o paradoxo apontado por Han é que o sujeito empreendedor de si mesmo acaba por explorar a si mesmo; o explorado é o mesmo explorador, vítima e algoz ao mesmo tempo: “A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com o (suposto) sentimento de liberdade”[4]. Na visão do autor, trata-se aqui de um mero viver: “Por isso, o escravo, que se apega ao mero viver e trabalho, não é capaz de experiência erótica, de cupidez erótica”[5].
Vivemos, hoje, de acordo com Han, no estágio histórico no qual senhor e escravo formam uma unidade: seríamos senhores-escravos ou escravos-senhores, “onde o neoliberalismo, com seus impulsos do eu e de desempenho desenfreados, é uma ordem social da qual eros desapareceu totalmente”[6]. Aqui, Han nos fala de sujeitos que simplesmente sobrevivem e que se parecem com mortos-vivos, que são por demais mortos para viver e por demais vivos para poder morrer.
Como não lembrar do que Lacan nos apresentou em sua palestra na capela de Sainte-Anne? Vejamos: “O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocês veem, não é pouca coisa, certo?”[7].
Encerro com a questão, que me parece oportuna: como o discurso psicanalítico, com sua aposta no amor de transferência, pode interpelar os sujeitos que portam sintomas contemporâneos decorrentes da evaporação do pai e da erosão do Outro?