#04 - SETEMBRO 2023
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Célia Ferreira Carta Winter (EBP/AMP)
Entre o “Não é louco quem quer”, escrito nas paredes do serviço de plantão de Saint Anne, e o “todo mundo é louco, quer dizer, delirante”, passaram-se alguns anos. Apesar de não se oporem, a consequência da passagem de uma afirmação à outra é radical.
O fundamento freudiano de “todo mundo é louco” é o sonho e nos coloca frente a um Freud para quem o modelo do analisante era o neurótico.
Com Lacan, o “todos loucos, quer dizer, delirante”, se dá pelo fato de sermos seres falantes, o que determina uma inadequação radical entre o real e o mental[1].
O aforismo “todo mundo” é louco condensa, em seu enunciado, todo o último ensino de Lacan, o que nos adverte a caminhar com cuidado. O neurótico traz, em si, o S2, que necessita, isto é, ele “sabe” o que quer dizer. Essa é nossa compreensão precipitada. E Lacan nos convida a sermos um pouco mais psicóticos[2], um pouco mais perplexos. Convida-nos a ler as coisas sem entendê-las e ajuda-nos com seu estilo que produz a perplexidade. Leonardo leva a sério essa advertência, e vai tecendo devagar, interrogando o aforismo, para extrair daí o trabalho a ser feito.
Logo de saída, situa o dois trilhamentos: “o que nos faz loucos a todos é a estrutura de linguagem, a estrutura de discurso”. Os trilhos, como representado no cartaz de lançamento da jornada, é uma representação muito feliz do mesmo e do diferente; qualquer desvio, e o caminho se faz outro. Todos loucos, pois somos parasitados pela linguagem. Parece-me que é a essa condição de parasita da linguagem que você se refere, mas gostaria que você falasse um pouco mais. Por onde Lacan articula a questão da causa em sua relação com a linguagem e as consequências que podemos tirar destas interlocuções? Refere-se à estrutura do Outro na teoria lacaniana, local onde a lógica significante se ancora e dá subsídios para entender o inconsciente a partir de uma relação própria com o saber e não mais a partir de uma tópica, enquanto local das representações, como se trata do inconsciente para Freud? Nesse sentido, no ensino de Lacan, não há linguagem que se totalize em um saber, ou seja, não há Outro consistente, ou uma significação última? Essa ausência de saber, nos levaria a 2ª parte do sintagma, ou seja, delirantes?
Nos Escritos[3], em seu texto sobre a causalidade psíquica, Lacan já colocava que a loucura está nesse espaço entre sentido e sem sentido. O delírio poderia ser pensado como o que acontece entre S1 e S2? Uma invenção de saber (S2) que vem dar sentido ao S1? O que nos interroga: qual a diferença na psicose?
Como proposto por Freud, o delírio é uma das formas de se lidar com a perda da realidade. Perda da realidade cuja defesa é a fantasia, na neurose, e o delírio, na psicose. Uma forma de costurar a trama do sentido esgarçado pela perda da realidade. Essa questão do sentido você aborda pelo viés do empuxo à produção e à produção de sentido com seus efeitos de dominação resultante da parceria do mercado e ciência e, atualmente, com a tecnologia.
Insisto na pergunta que você lança: resta aí espaço para o singular, para o impossível ou está tudo dominado?
Se nos efeitos do discurso capitalista, o tempo se acelera[4] e a produção se dá na conexão com o desejo – que se mobilize o id, que se engane o supereu para que se isole da culpa, que se criem semblantes imaginários para que se desorientem, que comprem o que não necessitem – o novo, frente a uma produção caracterizada pela indiferenciação do objeto, na qual a quantificação se adensa. Ao tomar o sujeito como uma mercadoria a mais, o discurso capitalista faz do “mais-de-gozar” apenas um valor a registrar ou deduzir do que se acumula.
Temos que nos interrogar como isso tem se apresentado na clínica, mas a indicação de Miller: Nos Tempos que Correm e na Terra desertificada é “não se deixar hipnotizar”, pois o que se espera de nós não é o diagnóstico, mas a ação, a ação lacaniana no polo oposto ao discurso da quantificação.
Deparamo-nos com uma clínica em que a referência não é mais o primeiro ensino, na qual o diagnóstico estrutural dava uma orientação: neurose ou psicose? Hoje, o que se busca, é o que pode fazer nó, o que pode aparecer da loucura de cada um, diferente da loucura do para todos e da psicose.
Na clínica, se tomamos o binômio neurose/psicose não como uma oposição, mas, como uma curva de Gauss[5], este deixa de ser um binômio para passar a se representar como um continuum, em que o extraordinário se situa nos extremos e o campo ordinário se expande ocupando a parte central. Isso aponta não só que a psicose desencadeada rareia nos consultórios, mas que o mesmo acontece com a neurose, em sua apresentação mais clássica. A neurose parece ter se ordinarizado pelas mesmas razões que a psicose, ou seja, como consequência do discurso da ciência e efeito de uma medicalização generalizada.
Cada vez mais o campo do ordinário cresce, e a exigência diagnóstica muda de acento. “Diante do louco, diante do delirante, não se esqueça que você é, ou foi, analisante, e, que também fala, ou falava, sobre o que não existe”. Assim, Miller encerrava seu texto Ironía[6], em 1993. Nesse texto, ele propôs opor à clínica diferencial entre neurose e psicose, uma “clínica universal do delírio”. Delirante e analisante, ambos falam do que não existe. Então de que loucura se trata?
Outra questão que gostaria de lançar é como essa fórmula da loucura para todos se apresenta no Outro Social? Se o Outro Social, ao autenticar as identificações diversas, abre um leque em que a crença no tudo possível, concorreria para a ideia de despatologização? No outro extremo como pensar o DSM, e a descrição de cada traço, cada comportamento correspondendo a uma classificação, um transtorno em um excesso classificatório? Valeria aqui a proposição: se tudo é patológico, nada é patológico, ou o discurso da despatologização poderia produzir agrupamento por identificação, o que resultaria em segregação?
Esse apagamento entre loucura e normalidade assinalado pelo aforismo lacaniano é orientador e nos convoca ao trabalho. Ao falar da loucura, que nos concerne a todos, nos deixa questões de como manter viva a psicanálise, mantendo aberta a porta ao singular. Esse sintagma é uma convocação de Lacan para lermos a clínica de outra maneira. Como dar conta do traço diferencial da loucura de cada um? De que loucura se trata? Como distinguir dos chamados “estilos de vida” agrupáveis em sintomas singulares testemunhos do impossível, do real?
A ausência de relação sexual torna inválida qualquer noção de saúde mental e qualquer noção de terapêutica como volta à saúde mental. O desejo está do lado oposto de qualquer norma. Ele é, como tal, extra normativo.[7] O discurso do mestre quer sempre a mesma coisa, o discurso do mestre quer o como todo mundo. Se o psicanalista banca alguma coisa, essa coisa é o direito, é a reivindicação, é a rebelião do não como todo mundo. É o direito a um desvio que não se mede por nenhuma norma. Um desvio vivido como tal, no dizer de Leonardo, no encontro de cada um com aquilo que lhe causa, que faz dele Um, para além da loucura que nos une.