#04 - SETEMBRO 2023
Comentário do eixo: O objeto a não tem sexo
Por Rafael Marques Longo[1]

Inicio anunciando a alegria por mais esta oportunidade de participação mais ativa da cidade de Joinville na Seção Sul da Escola Brasileira de Psicanálise. Por este comentário, agradeço o convite de Oscar Reymundo.
Seu instigante texto me pôs e tem me posto a trabalho, dada a atualidade do que apresenta e a fineza do que propõe. Diante do universal do todo mundo é louco, propõe um foco no que a transexualidade nos ensina, enunciando uma amarração entre o que a transexualidade nos ensina e o título da Jornada. Há algo de sua experiência – do sujeito trans – que está para todo ser falante, a cada um a seu modo, seu acento: o abismo entre anatomia e identidade sexual.
Esse abismo ressoou imediatamente no estatuto do corpo na obra de Lacan, que desde muito cedo verificou que a anatomia não é o destino, derivando, então, à questão sobre de que corpo se trata em psicanálise. Tomando algumas linhas de sua obra, pergunto:
Se, já no seminário 2¹, Lacan afirma que a biologia freudiana nada tem a ver com a biologia; se, no seminário 21², Lacan reafirma que o corpo de que trata não é o mesmo dos anatomo-fisiologistas; se, no seminário 24³, Lacan distingue três corpos, um por registro, sem nenhuma referência à anatomia; por que, ainda, nos chocamos com a incompatibilidade entre um dito corpo e a identidade sexual? Não nos faltaria, talvez, ler Lacan?
Tomo, ainda, a proposta por outra via, aludindo ao título do eixo O objeto a não tem sexo: o objeto a. Que, afora o título, nomeadamente está ausente, deslocado diretamente à questão trans.
Quando se afirma que o objeto a não tem sexo, o que se quer dizer com isso? O objeto a porta algo? Tratar-se-ia aí de uma oposição entre objeto a e o ser sexuado?
Sabemos, ao menos desde 1962⁴, que o objeto a se distingue do ser. E, mais tarde, soubemos que, se há algo que tenha sexo, é o ser, por ser sexuado. Vide o seminário 20⁵. Assumindo a apresentação de Lacan, em A terceira⁶, que centraliza o objeto a no nó borromeano, podemos inferir que operar com o objeto a, que não tem sexo, nos serviria para tratar de cada falasser, cada ser sexuado e, por que não, da questão trans?
Referências
-
Lacan, Jacques. Seminário, livro 2, o eu na teoria de Freud. 2.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 108: “Tomaremos a biologia por antífrase. A biologia freudiana não tem nada a ver com a biologia.”
-
Lacan, Jacques. Séminaire, livre 21, Les non-dupes errent. p. 17: “Je veux dire qu’il n’est pas impensable que le corps – le corps en tant que nous le croyons vivant – soit quelque chose de beaucoup plus calé que ce que connaissent les anatomo-physiologistes.” Disponível em: http://staferla.free.fr/S21/S21%20NON-DUPES….pdf
-
Lacan, Jacques. Séminaire, livre 24, L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre. p. 4: “Mais je me suis après tout aperçu que consister ça voulait dire quelque chose, c’est à savoir qu’il fallait parler de corps, qu’il y a : – un corps de l’Imaginaire, – un corps du Symbolique, c’est lalangue, – et un corps du Réel dont on ne sait pas comment il sort.” Disponível em: http://staferla.free.fr/S24/S24%20L’INSU….pdf
-
Lacan, Jacques. Seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
-
Lacan, Jacques. Seminário, livro 20, mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 12: “O ser do corpo certamente que é sexuado, mas é secundário, como se diz.”
-
Lacan, Jacques. A terceira. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.