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Comentário de Duas Locomotivas de Raúl Antelo

Por Biana Tomaselli

Agradeço ao convite de estar na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Florianópolis, ao lado do Professor Raul Antelo, a quem devo grande parte da minha formação e diante de um grupo de estudiosos cujas pesquisas revelam-se cada vez mais pertinentes para minha área de atuação no campo das Artes Visuais, da Arquitetura e da Literatura. Uma grande honra participar do evento.

A fim de tecer um comentário sobre o tema da louco-motiva, seja ele o da logos-motiva, como o Professor Raul Antelo magistralmente nos apresenta, gostaria de retomar uma ideia exposta em seu livro Em Muertes: miniaturas urbanas. Nele, a obra é entendida como um “ato criador que deve ser educado na visão estereoscópica e dimensional das sombras históricas”. Essa ideia descreve o próprio método da arquifilologia com o qual Antelo tem se dedicado a trabalhar, e que aponta o caráter eminentemente destrutivo de sua obra, a desbravar caminhos onde menos imaginamos encontrar.

Vale destacar que a estereoscopia é um dos instrumentos da reprodutibilidade técnica, entre os quais: a fotografia e o cinema, mas também as locomotivas. A história do cinema certamente seria outra sem o travelling, ou os inovadores modos de registrar a imagem, de iluminação e projeção realizados a partir de uma locomotiva em movimento, cujo filme La Roue (1923), produzido por Abel Gance, na companhia de Blaise Cendrars e Fernand Léger, é um caso exemplar [vide Autour de la Roue (1923) de Cendrars]. A locomotiva funda para o cinema uma experiência da visão que se radicalizará na montagem dos artistas do Cinema-Olho soviético no início da década de 1930.

Gustave Caillebotte, La pont de L’Europe, 1876, óleo sobre tela, 125 × 181 cm

O estereoscópio, em todo caso, é um instrumento de visão binocular que confere a ilusão de profundidade à uma imagem conformada na junção de dois registros visuais bastante similares, mas cujos pontos de fuga encontram-se levemente deslocados. A apropriação da visão estereoscópica pela vanguarda artística nos anos 1920 – tema explorado por Antelo em Maria com Marcel, Duchamp nos trópicos, teria o mérito de introduzir no regime de representação perspectivo o mecanismo do desejo e o papel do inconsciente.[1]  Ao desestabilizar a simetria do ponto de vista e do ponto de fuga da perspectiva renascentista, Duchamp coloca em questão o olhar desencarnado do sujeito cartesiano, sujeito transcendental, alheio à percepção de si e do outro.

Esse tema alimentaria as pesquisas do surrealismo. Sintomaticamente, esta é uma exploração em grande parte obliterada na história da arte. Sua leitura desperta problemas ainda hoje porque demanda a revisão de paradigmas estéticos, culturais e políticos do registro historiográfico e exige uma tentativa de compreender a expansão e concomitante obliteração do projeto surrealista. O poeta grego Nicolas Callas, integrante do círculo de Breton em Paris na década de 1930, colaborador assíduo da revista View, organizada entre 1940 e 57 pelos surrealistas de Nova York, publica o artigo Against the return to order na Artforum em 1983, no qual analisa alguns dos efeitos do sequestro do surrealismo.[2]

Callas denuncia a tese de Jean Clair, para quem a pintura moderna seria tributária da perspectiva renascentista. Apesar de discutir temas da metafísica em De Chirico e do estranhamento familiar em Freud, Clair certificou-se em assegurar um lugar na modernidade para o sujeito cartesiano da reprodução mimética. Para Callas, ao eleger a mimesis, Clair desconsidera as proposições introduzidas com a reprodução industrial por meio da fotografia e a reprodutibilidade técnica da imagem. Clair ignorava a emergência de uma nova sensibilidade entre o círculo de pintores realistas do qual pertencia Gustave Caillebotte, no qual um detalhe frequentemente despercebido passa a ocupar uma porção considerável da pintura – é o caso do calçamento das ruas em Rue de Paris, temps de pluie (1877), ou do entabuamento do piso de Les Raboteurs de Parquet (1875). Mas é precisamente a partir do(s) ponto(s) de vista de uma estação ferroviária em Le Pont d’Europe, que Nicolas Callas concentra sua análise, ao destacar que a indecibilidade das linhas da perspectiva que relacionam o sujeito da observação ao sujeito do assunto no quadro se potencializa na leitura proposta por Magritte.

Em Le mal du pays, Magritte substitui o movimento de vai e vem entre o cãozinho e os transeuntes e o zigue zague das treliças da ponte sobre a ferrovia, no qual se apoiam os maquinistas da pintura de Caillebotte, pelo anjo e o leão ao seu lado. Sob a influência de um batailleano sol podre de pretensões cegantes que lhe aniquila a ascensão, o anjo se ancora na composição alquímica do animal ao seu lado: o enxofre, em francês soufre, homônimo de je souffre (eu sofro).

O surrealismo submete, portanto, a ordem euclidiana à montagem fractal. Para Rosalind Krauss, Manet é um divisor de águas da pintura moderna porque as suas figuras (cf. Dejeneur sur l’Herbe, 1862-63), destituídas da razão perspectiva, são dispostas como se numa colagem fotográfica.[3] Não se dispõem à contemplação de um observador situado idealmente fora da cena. De modo semelhante, para Foucault, frente à Olympia de Manet o espectador deixa de ser mero observador e passa a ser coautor da(s) história(s) que atravessam a pintura.[4] Jacques Aumont, em sua leitura da obra de Manet, chama atenção para interpelação do negativo fotográfico na pintura de Manet – uma mancha negra que insiste em furar a representação.[5] Para Callas a montagem fractal tem a potência do filme negativo: ao mesmo tempo imagem e molde, potência criadora de imagens outras. O Je soufre da tela de Magritte ecoa no filme Passion (1982) de Godard, em que os intérpretes da Ronda Noturna comentam : “uma composição é cheia de buracos e de espaço mal preenchidos. Não analise a composição ou as cenas, faça como Rembrandt, olhe de perto os seres humanos, olhe demoradamente, nos lábios e nos olhos.” [6]

Talvez um dos artistas que mais tenha explorado a relação entre a experiencia da visão e o mecanismo do desejo tenha sido o surrealista espanhol José Val del Omar. Amigo de Garcia Lorca e Buñuel, Val del Omar buscou a sensação da terceira dimensão na vibração de luzes e sombras projetadas sobre as esculturas barrocas do Museu Nacional de Valladolid durante a realização de seu filme Fuego en Castilla (1961). Esse procedimento, que ele denominou TáctilVisión, deveria servir como uma mecamística capaz de, em suas palavras, “perfurar as carcaças do eu”.[7]

A experiencia provocada pelo cinema teria para Val del Omar um aspecto próximo à experiência que Jean Luc Nancy compreendeu como declosão. Tal a locomotiva surrealista que nos apresenta o Professor Raul, a declosão apresenta a expansão do universo até os lugares jamais localizáveis, onde os astros estão mortos desde imemoriáveis anos luz. Na declosão, afirma Nancy, a separação e a distinção das coisas, não é algo banal, pois forma o dom de todas as coisas, é a doação mesma das coisas. Não se conquista o espaço sem que ele conquiste, por sua vez, a seus conquistadores.[8]

Em sua passagem pelas missões pedagógicas da Segunda República Espanhola, durante a década de 30, Val del Omar levou o cinema a muitos pueblos que assistiam pela primeira vez um filme. Diante da imagem pioneira da locomotiva-filme que rasga a tela de cinema e ameaça irromper na sala, Val del Omar registrou os rostos perplexos, os olhos arregalados e as bocas entreabertos daqueles que observam. Do mesmo modo registrou o olhar curioso dos camponeses diante das obras de arte (reproduções do Prado) expostas no Museu Circular. Logos-motivas, essas fotografias têm a potência de nos situarem no limite do corpo que olha e do corpo que é visto, fazendo eclodir ante a linha do horizonte um movimento perpétuo de vir a ser, na imobilidade mesma do ato – Kant com Sade. Para retomar a bela imagem de Jean-Christophe Bailly citada por Nancy, o louco quadrado de pasto entre os trilhos de uma ferrovia.[9]


[1] ANTELO, Raul. Maria com Marcel. Duchamp nos trópicos. Belo Horizonte: UFMG: 2010.
[2] CALAS, Nicolas. Against The Return To Order. New York: Artforum, dec 1983.
[3] KRAUSS, Rosalind. The Originality of Avant-Guard and other Modernist Myths. Cambridge: MIT Press, 1998.
[4] FOUCAULT, Michel. A Pintura de Manet. VISUALIDADES, Goiânia, v.9, n.1, p. 259-285, jan-jun 2011. (Tadução de Rodolfo Eduardo Scachetti).
[5] AUMONT, Jacques. Matière d’images. Paris: Images Modernes, 2005.
[6] Passion. Direção: Jean-Luc Godard. França: Parafrance Films. 1983. (88min).
Cf. TOMASELLI, Bianca. Op. Cit. Capítulo 1. As Missões do Prado e a(s) História(s) de Fuego en Castilla.
[7] ORTIZ-ECHAGÜE, Javier (org). José Val del Omar. Escritos de técnica poética y mística. Madrid: Ediciones La Central/Museo Reina Sofía, 2010.
[8] NANCY, Jean-Luc. La declosión (Deconstrucción del cristianismo 1). Buenos Aires: La cebra, 2008. p.260-261.
[9] Idem, p. 259
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