Gustavo Ramos (EBP/AMP) Teresa Pavone (EBP/AMP) O VI Boletim da Seção Sul, assim como…
Circulações do amor nas escolhas sexuais binárias e não binárias
Por Gustavo Ramos da Silva
Antes de tudo eu quero agradecer o convite de Teresa Pavone, e meus colegas aqui hoje, Diego e Licene, e Ondina. Vou falar um pouquinho do GT que participei para o X Enapol. O tema foi: “circulações do amor nas escolhas sexuais binárias e não binárias”. Não vou fazer um resumo do nosso relatório final, pois isso vocês poderão ver no dia específico das conversações, e aqui já fica o convite para todos vocês participarem conosco. Em conversa com Teresa combinamos que minha fala seria sobre o que das discussões ficou para mim. Então vamos a esse percurso. Tomados pelo que Miller nomeou de “Ano trans”, nossas discussões iniciais ficaram em cima dessa toada, até que nos demos conta de uma coisa: falar de binário e não binário é falar especificamente da questão trans? Para mim esse foi um giro muito especial e importante para o desenrolar do GT, pois me fez retomar as primeiras lições do Seminário 20 e a leitura feita por Daniel Roy.
Lacan vai nos dizer que a linguagem não é o ser falante. A linguagem enquanto código, no seu valor de uso e de utensílio. E o ser falante enquanto gozo. Ao promover uma certa aproximação entre linguagem e ser falante, se promovermos um encontro entre linguagem e ser falante haverá uma intersecção vazia (mostrar o esquema). Assim, não haveria um “igual” entre os dois.
Podemos retomar ainda o utilitarismo de alguém como Jeremy Bentham o qual propõe a ficção como uma utilidade, um utensílio, entrando também no círculo da linguagem. Assim, a linguagem vem organizar o que denominamos de gozo fálico, mas ela não consegue recobrir todo o gozo, há uma parte que ela não consegue, está para além de seus limites digamos assim. Esse além nós podemos chamar de gozo do Um, o gozo não organizado pela linguagem, mas que deixa uma marca. Lacan vai se utilizar do direito para ler essa questão no Seminário 20 ao falar do usufruto: a linguagem vai tentar cernir o gozo de uma maneira que o usufruto seja possível sem enxovalhá-lo. A ficção está do lado da linguagem e do utensílio; o gozo, por sua vez, não “serve” para nada, então como abordar esse gozo, sem serventia, e sem mais o acesso a uma ficção, especialmente a essa parte do gozo não contabilizada pela linguagem? Aí se localiza a intersecção vazia, porém esse vazio como bem lemos no último livro de Marie-Hélène Brousse é cheio de energia, está pulsando de energia criativa.[1]
Sobre essa questão, Antônio Teixeira em um longo artigo vai pontuar sobre o gesto classificatório se basear em juntar vários elementos numa classe sobre a base de uma propriedade definida “x é P” desde que se construa, exteriormente a ela, a classe sem tal propriedade como limite: “y não é P”, ou seja: quando não há pelo menos duas classes excludentes, a noção mesma de classe perde sua consistência[2].
Mas há uma diferença quando os elementos das classes são sujeitos, pois isso significa que não haverá nenhuma propriedade representável, e é nesse ínterim que, para Teixeira, a psicanálise surge “enquanto resposta ao mal-estar gerado pela dificuldade que experimenta o sujeito em se adequar à unidade da classe em que ele se nomeia. Há sempre algum resto de exigência pulsional que resiste a ser integrado na unidade da representação, manifestando a cisão inerente à apresentação subjetiva nas formações do inconsciente, como se vê na irrupção dos sintomas, dos chistes e dos atos falhos.”[3]
Como juntar dois elementos – ling. e ser falante – que não tem nada em comum? Onde o “comum” é o vazio? Não seria esse vazio representacional o que tocaria na questão candente hoje no social da proliferação de siglas LGBTQIA+? Com isso, haveria uma classe dos analistas? Segundo Teixeira “o processo analítico consiste no declínio das identificações, ou seja, na destituição de todo predicado pelo qual se designa o pertencimento do indivíduo a uma classe, o sujeito que dessa experiência resulta se define pela impossibilidade mesma de ser incluído em qualquer representação.”[4] Não estaria aí o impasse de Paul Preciado com a psicanálise? Não há representação nem possibilidade de ser incluído em qualquer representação, pois quando os elementos do conjunto são sujeitos, como vimos, isso não ocorre, na medida em que a intersecção entre a linguagem que poderia nomear tudo e o gozo que não serve para nada é vazia e sem representação possível. No recente livro de Éric Marty, O sexo dos modernos, podemos ler uma análise minuciosa dessa passagem quando diz que as tentativas contemporâneas de nomear esse gozo, de tentar dar um significante, produz-se, pelo contrário, um significante-mestre – o que as siglas tentam é nomear um outro gozo, aquele que não passaria pela norma fálica, mas, com isso, instauram ao mesmo tempo um significante-mestre que vem com muita força no social, mas que também aparece na clínica. Isso foi bem explorado em nosso relatório por uma vinheta clínica sobre como esse significante-mestre foi manejado pelo analista. O neutro, em contrapartida, seria um fora da série, fora do simbólico, seguindo os estudos de Roland Barthes, culminando, talvez, no real lacaniano?
Como abordar esse real fazendo uso da linguagem? Esse é o desafio, pois talvez a ficção fantasmática não seja uma boa saída, mas aquilo que Lacan escreveu como uma outra fixão do real. Sob esse prisma, é preciso um détour, um desvio, uma rasura, como vemos na lição de Lituraterra quando Lacan vai na etimologia de “lino, linis, leui” e lá pelas tantas encontramos uma origem significante de “versar, espalhar um produto gorduroso, viscoso e, assim, permanecer fixado, inativo”[5]. Logo depois, no mesmo verbete do dicionário de Ernout et Meillet, chegamos em Hesíodo, onde ele propõe um “je me détourne et je reste inactif”[6]. Desse desvio inativo, ou vazio, pode surgir algo, uma invenção, como no poema “A uma razão”, de Rimbaud, na tradução de Ivo Barroso:
Um toque de teu dedo no tambor liberta todos os sons e começa a nova harmonia
Um passo teu é a mobilização dos novos homens e sua ordem de marchar
Se viras o rosto: o novo amor! Se desviras o rosto, – o novo amor!
“Quebra os nossos elos, acaba com os flagelos, a começar com o tempo”, cantam nas danças as crianças.
“Ergue, não importa onde, a substância de nossos destinos e desejos”, te suplicam.
Do sempre chegada, irás por toda estrada.[7]
Gostaria, para terminar, de me centrar no verso “se viras o rosto: o novo amor”, pois no francês nós lemos “ta tête se détourne […] ta tête se retourne“[8], há um des-virar inicial, não entrando mais numa leitura de um amor novo, up to date, nem numa repetição do mesmo, à maneira edipiana, fálica, mas sim numa leitura a partir da e com a intersecção vazia: o novo no amor. Não estaria aí, nessa intersecção, o amor?