skip to Main Content

Autoria de ouvido

Gustavo Ramos da Silva[1]

Na Metamorfose de Franz Kafka, Gregor Samsa, após acordar e se dar conta de que perdeu a forma humana e virou um inseto em cima de sua cama, além de perder a forma, perde também a fala humana com a “[…] assunção da indecifrável voz de um animal”[2]. Desse ponto de vista, se o que lemos a partir de então não é mais oriundo de uma voz humana, como qualificar essa leitura? Isso me remonta ao último romance de Clarice Lispector, A Paixão Segundo GH, quando a narradora em primeira pessoa perde sua montagem humana ao entrar no quarto da ex-empregada. Qual seria o estatuto dessa fala e dessa escuta advinda dessa fala?

No livro Escrever de ouvido, Marília Librandi consegue cernir um pouco mais esse ponto ao postular a existência de uma escuta na escrita, fato esse que promoveria uma ressignificação no próprio conceito de autoria. Um texto escrito ancorado na escuta, afirma ela, é um texto que recebe ao invés de um texto que produz, é mais um texto receptor do que produtor. Por conseguinte, um autor orientado pela escuta, atua menos como sujeito do que como objeto de recepção, como uma espécie de antena[3].

Esse é um ponto muito importante também na psicanálise, pois ressoa o Lacan de Joyce, o sintoma, ao apregoar: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto.”[4] Haveria aí um eco da antena receptora e não produtora. Lacan vai escutar o linguista Émile Benveniste ao afirmar que o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem, porém de forma invertida. No próprio Estádio do Espelho, nós já conseguimos localizar essa desconexão primordial ao se ver na lâmina refletora os lados invertidos, esquerdo para direito e vice-versa. Se é desse Outro que recebemos a interpretação, dependendo de como é ouvida essa inversão, marcas podem permanecer na escrita posterior sobre essa escuta. Como nos diz Éric Marty, em uma leitura de Judith Butler, a frase “Tu és um ladrão” retorna espelhada como “Eu” [Je], afinal de contas o Tu se torna Eu.

Já o filósofo Jean-Luc Nancy no livro À l’écoute distingue entendre (ouvir) e écouter (escutar). O ouvir significa entender o significado da mensagem, entender o que está sendo dito por meio do intelecto. Já a escuta denota uma concentração intensa e específica naquilo que é recebido em termos de ressonância corporal, e que se preste atenção sobretudo à entoação, aos timbres, aos ruídos e aos silêncios.[5] A escuta estaria antes da linguagem articulada e com o que vem depois, afirma Librandi, o que bem poderia ser uma possível definição de lalíngua. É essa escrita do gozo sobre o corpo a que conservaria a estrutura invertida da mensagem, segundo Éric Laurent[6], denominando-a de interpretação como acontecimento de corpo, justamente o que se perde tanto em Kafka quanto em Clarice, a referida montagem humana.

Sob esse prisma, o conceito de infamiliar pode entrar em cena, na medida em que quando estamos fora de um lugar, de um território, que reconhecemos sua singularidade e nos tornamos estrangeiros. O perspectivismo ameríndio vai além ao colocar inclusive o estar fora do corpo como uma possibilidade, antinarcísica é claro, de se habitar um outro ponto de vista.

Com isso, podemos postular uma autoria de ouvido na esteira do que Librandi escreve sobre o sacrifício da voz dar origem a uma escuta des(autoral). Imagino a autoria de ouvido na boutade de Oswald de Andrade quando este escreve “a gente escreve o que ouve – nunca o que houve”[7] já nos colocando que é preciso da leitura junto ao ouvido, afinal de contas a letra “h” que não é nem consoante nem vogal, e não apresenta sonoridade. Apesar disso, promove uma pequena-grande diferença quando se faz presente e ausente, o que nos encaminha para a importância da escrita de ouvido para diferenciarmos a escrita como invenção da escrita da História, do que houve.

Podemos terminar como começamos, com a passagem que serve de pontapé para Marília Librandi escrever seu livro: “E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido.”[8] Não estaríamos aí diante de uma autoria de ouvido?


Referências
ANDRADE, Oswald de. Estética e política. BOAVENTURA, Maria Eugenia (Org.). 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: Globo, 2011
KAFKA, Franz. Metamorfose. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LIBRANDI, Marília. Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta. Trad. de Jamille Pinheiro Dias e Sheyla Miranda. Belo Horizonte: Relicário, 2020.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_______. A paixão segundo GH: romance. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
NANCY, Jean-Luc Nancy. À escuta. Trad. de Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2014.

[1] Psicanalista. Participante da Comissão de Referências da 3a Jornada da Seção Sul da EBP. Integrante da Comissão de Cartéis da EBP. Doutor em Literatura (UFSC).
[2] LIBRANDI, Marília. Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta. Trad. de Jamille Pinheiro Dias e Sheyla Miranda. Belo Horizonte: Relicário, 2020. p. 218.
[3] Ibid, p. 72.
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 158.
[5] NANCY, Jean-Luc. À escuta. Trad. de Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2014.
[6] LAURENT, Éric. La interpretación acontecimiento. Trad. de Tomás Verger. In: Revista Virtualia, n. 37, out. 2019. p. 4.
[7] ANDRADE, Oswald de. Objeto e fim da presente obra. In: Estética e política. BOAVENTURA, Maria Eugenia (Org.). 2. ed. revis. e ampl. São Paulo: Globo, 2011. p. 62.
[8] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 18.
Back To Top